quarta-feira, 16 de julho de 2008

DIABÓLICA de Nelson Rodrigues

Na noite do pedido oficial, Dagmar, de braço com o noivo, foi até a janela, que se abria para o jardim. Então, com uma tristeza involuntária, uma espécie de presságio, suspirou. E foi meio vaga:

— Caso sério! Caso sério!

E Geraldo, baixo e doce:

— Por quê?

Dagmar vacila. Finalmente, tomando coragem, indica com o olhar:

— Estás vendo minha irmã?

— Estou.

Durante alguns momentos, olharam, em silêncio, a pequena Alicinha, de treze anos, que, na ocasião, apanhava uma flor no jarro, para dar não sei a quem. Dagmar pergunta: “Bonita, não é?”. Geraldo concorda: “Linda!”. Então, pousando a mão no braço do noivo, a pequena continua:

— Por enquanto, Alicinha é criança. Mas daqui a um ano, dois, vai ser uma mulher e tanto.

— Um espetáculo!

Sorriu, triste:

— Um espetáculo, sim! — Pausa e, súbito, tem uma sinceridade heróica: — Há de ser mais bonita do que eu.

Geraldo interrompeu: “Protesto!”

Foi quase grosseira:

— Não me põe máscara, não! Eu tenho espelho, ouviu? Agora, que sou tua noiva, quero te dizer o seguinte.

— Fala.

E ela:

— Você é homem e eu sei que esse negócio de homem fiel é bobagem. Mas toma nota: se você tiver que me trair, que não seja nem com vizinha, nem com amiga, nem com parente. Você percebeu?

Surpreso e divertido, exclama:

— Você é de morte, hein?

AS IRMÃS


Havia entre as duas irmãs uma diferença de quatro anos; Dagmar tinha dezessete, Alicinha treze. Até então, Geraldo via a cunhada como uma menina irremediável. No fundo, talvez imaginasse que ela seria para sempre assim, criança, criança. A observação da noiva o apanhou desprevenido. Pouco depois, olhava para Alicinha com uma nova e dissimulada curiosidade. Sentiu que a mulher, ainda contida na menina, começava a desabrochar. Esta constatação o perturbou, deu-lhe uma espécie de vertigem.

Na hora de sair, despediu-se de todos. A noiva veio levá-lo até o portão. Ao ser beijada na face, disse:

— E não esqueça: Alicinha é sagrada para você!

Era demais. Doeu-se e protestou:

— Mas que palpite é esse? Que idéia você faz de mim? Sabe que assim você até me ofende?

Cruzou os braços, irredutível:

— Ofendo por quê? Os homens não são uns falsos?

— Eu, não!

Ela replicou, veemente:

— Você é como os outros. A mesma coisa, compreendeu?

FAMÍLIA


Mas quando Dagmar confessou aos pais que advertira o noivo, foi um deus-nos-acuda. A mãe pôs as mãos na cabeça: “Você é maluca?”. Quanto ao pai, passou-lhe um verdadeiro sabão:


— Foi um golpe errado. Erradíssimo!

— Eu não acho.

O velho tratou de ser demonstrativo: “Você pôs maldade onde não havia! Despertou a idéia do seu noivo!”.

Replicou, segura de si:

— Papai, eu sei muito bem onde tenho o meu nariz.

O pai andava de um lado para outro, nervoso. Estacou, interpelando-a:

— E agora, com que cara teu noivo vai olhar para tua irmã? Vocês, mulheres, enchem! E, além disso, parta do seguinte princípio: uma irmã está acima de qualquer suspeita! Família é família, ora bolas!

E Dagmar, obstinada:

— Meu pai, gosto muito de Alicinha. É uma pequena ótima, formidável e outros bichos. Mas intimidade de irmã bonita com cunhado, não! Nunca!

CIÚMES DOENTIOS


Num instante, criou-se o caso no seio da família. Não houve duas opiniões. Segundo todo mundo, aquilo não era normal, não podia ser normal. Um dos grandes argumentos foi a idade de Alicinha: “Como pode? Como pode?”. O pai, mascando o charuto, argumentava: “Que você desconfie de todo mundo, até de poste, vá lá! Acho que uma mulher deve defender com unhas e dentes o seu homem. Mas irmã é outra coisa! Irmã é diferente!”.

Na sua tristeza, ela replicava: “O que eu não sou é burra!”. E o pai: “Nem sua irmã, nem seu noivo merecem isso!”. Por fim, já se falava, abertamente, em caso. Um primo da pequena, que era pediatra, sugeriu: — Por que é que não levas fulana a um psiquiatra? Ela acabou indo, vencida pelo cansaço da própria vontade. Lá, o psiquiatra, depois de um interrogatório medonho, chega à seguinte conclusão: “O negócio é extrair os dentes!”. O pai da pequena caiu das nuvens. Chorou, amargamente, o dinheiro da consulta:

— Mas que animal! Que palhaço! — E, jocoso, criava o problema:

— Isso é psiquiatra ou é dentista?

Mas o fato é que, pouco a pouco, sem sentir e sem querer, Dagmar foi se deixando dominar pela pressão da família. O próprio noivo colaborou nesse sentido. Era hábil:

— Você não precisa ter medo de mulher nenhuma. Pra mim, não existe no mundo mulher mais bonita do que você. Palavra de honra!

O MAIÔ


Só quem não se dava por achada e parecia ignorar o disse-que-medisse era a própria Alicinha. Tratava a irmã e o cunhado com a mesma naturalidade. E era tão sem maldade, tão inocente, que, certa vez, comprou um maiô fabulosíssimo e apareceu com ele na sala, diante de Dagmar e do Geraldo. Foi uma situação pânica. Por um momento, o embasbacado cunhado não soube o que dizer, o que pensar. Empalidecera e... Girando como um modelo profissional, Alicinha perguntava:

— Que tal?

Por uma fração de segundo, Dagmar pensou em explodir. Mas convencera-se de que precisava reeducar-se; dominou o próprio impulso. Com um máximo de naturalidade, admitiu: “Bonito!”. O atônito, o ofuscado, o desgovernado Geraldo gemeu: “Infernal!”. Mas quando deixou a casa da noiva, nesse dia, ia numa impressão profunda. Mais tarde, no bilhar, com uns amigos, fez o seguinte jogo de palavras:

— Não há mulher mais bonita que uma cunhada bonita!

SONSA


No dia seguinte, Alicinha passa por ele e pisca o olho: “Deixei de ser criança! Já não sou mais criança!”. Isso poderia significar pouco ou muito. De qualquer forma, desconcertado, ele chegou a transpirar. Mais dois ou três dias, e Alicinha vai procurá-lo no escritório. Senta-se a seu lado; diz: “Você tem medo de mim?”. O pobre-diabo gaguejou: “Por quê?”. E ela, com um olhar intenso, não de criança, mas de mulher: “Tem, sim, tem!”. Parece divertida. E, subitamente, séria, ergue-se e aproxima-se. Estavam no gabinete de Geraldo. Alicinha inclina-se e pede:

— Um beijo.

Lívido, obedeceu. Roçou, de leve, a face da pequena. Ela insistiu: “Isso não é beijo. Quero um beijo de verdade”. Geraldo levanta-se. Recua apavorado, como se aquela garota representasse uma ameaça hedionda. Numa espécie de soluço, diz: “Eu amo minha noiva! Amo tua irmã!”. E ela, diante dele: “Só um!”. Petrificado, deixou-se beijar uma vez, muitas vezes. E não podia compreender a determinação implacável de uma menina de treze anos.

Antes de sair, ela diria: “Você é meu também!”. E o ameaçou, segura de si e da própria maldade: “Vou te avisando: se começares com coisa, eu direi a todo mundo que houve o diabo entre nós!”. Geraldo arriou na cadeira; uivou:

— Demônio! Demônio!

O BEIJO


Foi, desde então, um escravo da menina. E, coisa interessante: ao mesmo tempo que se sentia atraído, tinha-lhe ódio. Sentia nela uma precocidade hedionda. E, por outro lado, era um fraco, um indefeso, um derrotado. Até que, uma tarde, entra numa delegacia; soluçando, anuncia: “Acabei de matar minha cunhada, Alice de tal, num lugar assim, assim”.

Ainda prestava declarações quando Dagmar invade a delegacia. Passara pelo lugar em que Alicinha fora assassinada; vira a irmã, de bruços, com o cabo do punhal emergindo das costas. Então, fora de si, correu para a delegacia. E houve uma cena que ninguém pôde prever. Avançou, apanhou entre as mãos o rosto do noivo e o beijou na boca, com loucura. Foi agarrada, arrastada. Debatia-se nos braços dos
investigadores.

Gritava:

— Oh, graças! Graças!

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