INTRODUÇÃO
O meio militar é considerado por muitos estudiosos como um dos berços onde os princípios organizacionais foram criados. A organização militar, enquanto modelo para as organizações civis, é tratada, por exemplo, por Chiavenato¹, que relaciona estudiosos da estratégia militar desde Sun Tzu, general e filósofo chinês do século V a.c., até Clausewitz, general prussiano do século XIX.
Neste texto, não temos como objetivo somente reafirmar este padrão tão conhecido, mas sim demonstrar como as organizações militares evoluíram com o passar do tempo, e como esta evolução continua modelando as relações de influência recíproca entre os modelos organizacionais das organizações civis e militares até os nossos dias.
1ª FASE: OS PRIMÓRDIOS PRUSSIANOS
No que diz respeito à teoria da guerra, a Prússia (província alemã até 1945, atualmente território russo e polonês) nos forneceu dois grandes pensadores: Frederico II, o Grande (1712 a 1786) e Carl von Clausewitz (1780 a 1831). Morgan² (pág. 25) é conclusivo a este respeito quando diz que “Muito foi aprendido do militarismo que, pelo menos desde os tempos de Frederico, o Grande, da Prússia, emergiu como protótipo da organização mecanicista. Frederico, que reinou entre 1740 e 1786, herdou um exército composto, na sua maior parte, de criminosos, mendigos, mercenários estrangeiros e recrutas mal intencionados – uma massa de pessoas sem princípios. Estava determinado a mudar isso e rapidamente começou a fazer reformas. (...) Entre essas reformas estava a introdução de soldados rasos e uniformes, a extensão e padronização de regulamentos, a especialização crescente de tarefas, o uso de equipamento padronizado, a criação de linguagem de comando e o treinamento sistemático que envolvia exercícios de guerra e disciplina. A tentativa de Frederico era transformar o exército em um mecanismo eficiente que funcionasse por meio de peças padronizadas. Os procedimentos em treinamento permitiram que essas partes fossem forjadas de toda e qualquer matéria-prima, facilitando que as mesmas fossem rapidamente substituídas quando necessário, qualidade essencial para as operações em tempo de guerra”.
Clausewitz, que nasceu durante o reinado de Frederico II, foi contemporâneo das guerras napoleônicas (1799-1815) e criador da Academia de Guerra de Berlim. Ele nos deixou como legado a obra “Da Guerra”, que apesar de inacabada, pode ser considerada o mais importante tratado ocidental sobre a condução de operações militares.
Esta primeira fase poderia ter como marco inicial a Paz de Westphalia, em 1648, que pôs fim à guerra dos trinta anos entre católicos e protestantes, e como marco final o início da guerra da Criméia, em 1853. O grande acontecimento desta fase é o re-estabelecimento do monopólio do estado na condução das guerras, ao contrário do que ocorreu durante toda a idade média e renascença, em que exércitos mercenários prestavam seus serviços a quem melhor lhes pagasse, seja um senhor feudal, um rei ou o papa.
Segundo Silva³, “A relevância da primeira geração surge do fato de que o campo de batalha ordenado criou uma cultura militar de ordem. A maioria das características que distinguem o militar do civil (uniformes, continências, graus hierárquicos, etc.) são produtos da primeira geração, com a intenção de reforçar a cultura da ordem. Já em meados do século XIX, o ordenado campo de batalha começou a se desordenar. Exércitos concentrados, soldados motivados para a guerra (já que o objetivo do soldado do século XVIII era desertar), mosquetes raiados e, mais tarde, armas de retrocarga e metralhadoras tornaram as táticas antigas de linha e coluna primeiro obsoletas, e logo suicidas. O problema desde então tem sido uma crescente contradição entre a cultura militar e o aumento da desordem no campo de batalha. A cultura da ordem, que outrora foi coerente com o ambiente no qual operava, tem ficado cada vez mais incoerente com o mesmo”.
Percebam que esta fase, em que a cultura da ordem prevaleceu no campo de batalha, coincide com o surgimento da revolução industrial. Desta forma, o modelo organizacional militar estava entre as poucas opções existentes (para não dizer a única além da estrutura organizacional da Igreja Católica Romana) para serem copiadas pelas indústrias que despontavam na Europa e América do Norte.
2ª FASE: A ORQUESTRA
As duas décadas em que ocorreram as guerras da Criméia (1853-1856), de Secessão Americana (1861-1865), do Paraguai (1865-1870), e Franco-prussiana (1870-1871) formaram um período de transição e serviram para demonstrar o quão obsoletas estavam as antigas táticas de linha e coluna diante de inovações militares como o fuzil semi-automático de cano raiado e armas de repetição automáticas, como as metralhadoras, e inauguraram uma nova fase, que podemos chamar de guerra de segunda geração.
Segundo Silva³, “...a guerra de segunda geração foi uma resposta ao desalinhamento observado no campo militar nos últimos decênios do séc. XIX. Desenvolvida pelo exército francês, antes e depois da I guerra mundial, a guerra de segunda geração procurou uma solução no fogo concentrado, a maior parte dele de artilharia. O objetivo era o atrito e a doutrina era resumida pelos franceses como sendo ‘a artilharia conquista, a infantaria ocupa’. O poder de fogo era cuidadosamente sincronizado (usando-se planos e ordens detalhados e específicos para a infantaria, carros de combate e artilharia), em uma batalha conduzida, onde o comandante atuava, com efeito, como o regente de uma grande orquestra. A guerra de segunda geração atingiu o seu objetivo, porque chegou trazendo um grande alívio para os soldados (ou ao menos para os seus oficiais), uma vez que preservava a cultura da ordem no campo de batalha. O enfoque era voltado para dentro, sobre regras, processos e procedimentos, e a obediência era mais importante do que a iniciativa. De fato, a iniciativa não era bem-vinda, pois colocava a sincronização em perigo. A disciplina era vertical, hierarquizada e imposta”.
Esta segunda fase vai até o término da I Guerra Mundial, em 1918. Não é à toa que um dos principais expoentes da abordagem clássica da administração tenha sido um francês, Henry Fayol (1841-1925), e que o mesmo tenha dado toda a ênfase do seu trabalho na estrutura das organizações. Morgan² (pág. 30), escrevendo a respeito dos teóricos clássicos, nos diz que “Toda a crença básica da teoria da administração clássica e a sua aplicação moderna é sugerir que as organizações podem ou devem ser sistemas racionais que operam de maneira tão eficiente quanto possível”.
É possível perceber também na descrição de Silva5 grande semelhança com as teorias de dois outros grandes pensadores: Frederick Taylor (1856-1915), com sua administração científica e Max Weber (1864-1920), com sua teoria da organização burocrática. Os três (Fayol, Taylor e Weber) são contemporâneos desta segunda fase, e suas teorias trazem grandes semelhanças com as mudanças organizacionais introduzidas nas organizações militares de sua época. Abre-se aqui uma oportunidade de estudo, para que se determine quem influenciou quem, entre as organizações civis e militares.
3ª FASE: BLITZKRIEG
As duas décadas entre o término da I Guerra Mundial (1914-1918) e o início da II Guerra Mundial (1939-1945) formam um momento de transição na arte da guerra. Já em 1918 os alemães iniciaram um novo tipo de ofensiva, mas ela chegou tarde demais para mudar os rumos da guerra. Ao assumir o poder em 1933, Hitler (que era um grande admirador de Frederico II, o Grande) retomou formalmente o fortalecimento das forças armadas alemãs, incluindo o desenvolvimento de táticas como a Blitzkrieg (guerra relâmpago). Quando eclodiu a guerra civil espanhola (1936-1939) criou-se a oportunidade ideal para testar as táticas que seriam usadas com esmagadora eficiência a partir de 1939.
Segundo Silva³, “A guerra de terceira geração foi baseada não no poder de fogo e no atrito, mas na velocidade, na surpresa e no deslocamento mental e físico. Taticamente, durante o ataque, o militar de terceira geração procura adentrar nas áreas de retaguarda do inimigo, causando-lhe o colapso da retaguarda para a frente. Ao invés de aproximar e destruir, o lema é passar e causar o colapso. Na defesa, a idéia é atrair o inimigo, e então cortar-lhe a retirada. A guerra deixa de ser um concurso de empurrar, onde as forças tentam segurar ou avançar uma linha, e transforma-se em não linear. Não são apenas as táticas que mudam, mas muda também a cultura militar. O combatente desta nova forma de guerrear foca exteriormente, na situação, no inimigo e no resultado exigido pela situação, e não interiormente, no processo ou na metodologia. Durante jogos de guerra (...) oficiais subalternos alemães rotineiramente recebiam problemas que somente podiam ser resolvidos desobedecendo a ordens. Estas especificavam o resultado a ser conseguido, mas nunca o método. A iniciativa era mais importante do que a obediência (toleravam-se os erros, contanto que originados de demasiada iniciativa, ao invés de pouca). Tudo dependia da autodisciplina e não da disciplina imposta.”
Como se pode ver, o exército alemão continuava fazendo belos desfiles, mas havia quebrado com a cultura da ordem. A alemanha perdeu a guerra, mas sua forma de guerrear fez escola e se tornou o padrão de excelência vigente. Esta visão possui interessante semelhança com o proposto nos anos imediatamente posteriores à II Guerra Mundial pelos autores neoclássicos na teoria da APO – Administração por Objetivos, principalmente no que diz respeito à mudança do foco, que sai dos meios para os fins. Segundo Chiavenato¹ (pág. 187), “A partir da década de 1950, a Teoria Neoclássica deslocou a atenção antes fixada nas chamadas ‘atividades-meio’ para os objetivos ou finalidades da organização. O enfoque baseado no processo e a preocupação com as atividades (meios) passaram a ser substituídos por um enfoque nos resultados e objetivos a alcançar (fins). O foco no ‘como’ administrar passou para o foco no ‘por que’ ou ‘para que’ administrar. A ênfase em fazer corretamente o trabalho para alcançar eficiência passou à ênfase em fazer o trabalho mais relevante aos objetivos da organização para alcançar eficácia. O trabalho passou de um fim em si mesmo para constituir um meio de obter resultados”.
Outra inovação da Blitzkrieg estava na autonomia dada aos comandantes para que tomassem as decisões que julgavam mais acertadas para atingir os objetivos propostos. Como o foco estava na situação exterior, o processo decisório se tornou totalmente contingencial, já que a guerra é um ambiente em constante mudança. Este ponto traz um paralelo com metáfora orgânica de Morgan² (pág. 74) quando ele diz que “Uma das primeiras forças da metáfora provém da ênfase colocada na compreensão das relações entre as organizações e os seus ambientes. As teorias mecânicas exploradas no capítulo 2 ignoram, de certa forma, o papel do ambiente tratando as organizações como sistemas relativamente fechados que podem ser configurados como partes estruturadas claramente definidas. Em contraste, as idéias consideradas neste capítulo colocam em evidência que as organizações são sistemas abertos que são mais bem compreendidos como processos contínuos em lugar de coleções de partes. (...) A metáfora enfatiza a sobrevivência como alvo-chave ou principal atividade enfrentada por qualquer organização. Isso contrasta com o enfoque clássico sobre objetivos operacionais específicos. (...) As idéias exploradas neste capítulo são aquelas que sugerem que, se inovação é uma prioridade, então, formas de organização flexíveis, dinâmicas, matriciais orientadas por projetos ou orgânicas serão superiores à mecanicista burocrática”. Que o digam os defensores da Linha Maginot, símbolo máximo da teoria militar francesa à época.
4ª FASE: GUERRA ASSIMÉTRICA
Mal haviam sido aprendidas as lições da Blitzkrieg, e uma nova modalidade de guerra surgia em 1946 na então colônia francesa da Indochina, atual Vietnã. Este conflito passou por várias fases, mas só foi terminar em 1975. Pela primeira vez em séculos, duas potências (França e Estados Unidos) foram derrotadas por um inimigo não estatal. Iniciava-se aí a quarta fase, também conhecida como guerra assimétrica.
De acordo com Silva³, a quarta geração “... marca a mudança mais radical desde a Paz de Westphalia. Nesta geração de guerra o Estado perde o monopólio sobre a guerra propriamente dita. Em todo o mundo, militares se encontram combatendo oponentes não estatais, tais como: a Al-Qaeda, o Hamas, o Hezbollah e as FARC, entre outros, e em quase toda a parte o Estado está sendo derrotado. A guerra de quarta geração é também marcada por uma volta ao mundo de culturas, não meramente países em conflito. (...) No seu fundamento encontra-se uma crise universal de legitimidade do Estado (...)”.
Esta crise é claramente exposta por Kaplan4 (págs. 64-68): “Desbancando o grande estrategista militar Carl von Clausewit, Martin van Creveld (historiador militar da Universidade Hebraica, em Jerusalém, em ‘The transformation of war’) (...) escreve: ‘As idéias de Clausewitz (...) eram inteiramente enraizadas no fato de que desde 1648 a guerra foi quase totalmente travada por estados’. Mas como explica van Creveld, o período de nações-estados – e portanto, o conflito entre estados – está no fim e, com ele, a clara tríplice divisão em governo, exército e povo imposta por guerras entre estados. Assim, para vermos o futuro, o primeiro passo é olhar para o passado imediatamente anterior ao nascimento do modernismo – as guerras na Europa medieval que se iniciaram durante a Reforma e chegaram a seu ápice na Guerra dos Trinta Anos. (...) Uma vez que o monopólio legal da força pelas armas, há muito considerado como exclusivo do estado, seja arrebatado de suas mãos, as distinções existentes entre a guerra e o crime se esvairão como é em grande parte o caso no (...) Líbano, Sri Lanka, El Salvador (...) ou Colômbia. Se o crime e a guerra se tornarem indistinguíveis, então a defesa nacional poderá ser vista futuramente como um conceito regional. À medida que a criminalidade continuar a crescer em nossas cidades e a capacidade de governos e sistemas de justiça criminal de estados para proteger seus cidadãos diminuir, a criminalidade urbana poderá, de acordo com van Creveld: ‘se transformar em um conflito de baixa intensidade, aglutinando-se em linhas raciais, religiosas, sociais e políticas’. À proporção que a violência em pequena escala se multiplicar tanto em casa como no exterior, exércitos de estados continuarão a encolher, sendo gradualmente substituídos por negócios crescentemente lucrativos de segurança particular, hoje em franca expansão, como na África ocidental, e por máfias urbanas, especialmente no antigo mundo comunista, que poderão estar mais bem equipadas do que as forças policiais municipais para conceder segurança física aos habitantes locais”. Tem-se a impressão de que van Creveld está descrevendo a situação da segurança pública no Brasil.
O tema da terceirização de operações militares também é tratado por Reis5: “A atuação contra a Al Qaeda e os fundamentalistas islâmicos trouxe à baila um confronto sobre o tamanho das forças militares americanas. (...) Dois aspectos marcam a idéia acima. A primeira é a imprevisibilidade que cerca as áreas de operações, em especial quando o objetivo é um alvo que não possui face e não se sabe em que ponto do planeta as ameaças irão manifestar-se. A segunda é que um conflito desta natureza assume como compromisso inicial um aumento de ações defensivas. Isto pode representar o incremento de efetivos para fazer frente aos desafios e atender os requisitos de defesa. As duas perplexidades acima ainda não tiveram uma resposta firme por parte de Washington, prevalecendo uma concepção conhecida como ‘Doutrina Rumsfeld’. Esta tem, como um dos seus pilares, a terceirização de atividades militares no campo operacional. As empresas envolvidas neste tipo de empreendimento receberam a denominação de PMC – Private Military Companies (Companhias Militares Privadas)”.
Silva³ conclui que: “A atuação da força terrestre será fundamental na luta contra um inimigo que empregue o procedimento do tipo guerrilha. Contudo, contra a subversão e o terrorismo seu papel haverá de ser de apoio às atividades das forças de segurança pública. Devemos considerar a possibilidade de que a força terrestre, além de ter as capacidades militares clássicas, deve adquirir outras, mais ‘civis’, que a permita adaptar-se à conjuntura da guerra assimétrica. Na conjuntura da guerra assimétrica, trata-se de resolver situações sociais e culturais complexas, em um ambiente hostil, as quais requerem uma preparação e métodos de execução diferentes dos tradicionalmente empregados”.
Todo este processo de adaptação das organizações militares vem acontecendo nos últimos 50 anos, mas se acelerou dramaticamente após o fim da Guerra Fria, em 1989. Coincidentemente ou não, desde 1989 as organizações civis passaram por uma série de fenômenos organizacionais, sendo os mais importantes a qualidade total, o downsizing, a reengenharia e a terceirização, e todos, em maior ou menor grau, encontram correspondência dentro das organizações militares.
CONCLUSÃO
Segundo Morgan² (pág. 102), uma organização pode ser considerada holográfica quando: garante o todo em cada parte, cria conexão e redundância, cria simultaneamente especialização e generalização, e cria a capacidade de auto-organização. Todos estes preceitos estão hoje presentes nas modernas organizações militares. É necessário um estudo mais apurado para que se possa contar a história desta simbiose entre as organizações civis e militares com mais detalhes, mas uma coisa é certa: foi-se o tempo em que as organizações militares poderiam ser vistas somente como estruturas rígidas e mecanicistas. Todos os exércitos que assim se comportaram foram derrotados. Como diz Reis5: “A mais efetiva forma de gerir a mudança, com êxito, é criá-la”.
Bibliografia:
1. CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à teoria geral da administração: edição compacta. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
2. MORGAN, Gareth. Imagens da organização. São Paulo: Atlas, 1996.
3. SILVA, General Carlos Alberto Pinto. Guerra assimétrica: Adaptação para o êxito militar. www.defesanet.com.br, 2008.
4. KAPLAN, Robert. À beira da anarquia – Destruindo os sonhos da era pós-guerra fria. São Paulo: Futura, 2000.
5. REIS, Contra-Almirante Reginaldo Gomes Garcia dos. A imprevisibilidade da guerra. São Paulo: Tecnodefesa, 2004.
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