sexta-feira, 18 de julho de 2008

Soldados e Guerreiros: Uma Questão Civilizacional ou uma das Linhas de Fragmentação da Globalização?*

Major Alexandre Manuel Garrinhas Carriço**


A guerra é natural; a paz não.

Emmanuel Kant

Para o melhor ou para o pior os Estados Unidos monopolizaram o futuro da guerra e por algum tempo o futuro da humanidade.

George Friedman, The Future of War

Países amorfos produzem homens amorfos…Não é característico de um determinado solo a produção de bons frutos e bons soldados.

Heródoto

1. Introdução e Enquadramento

Quanto mais globalizados nos encontramos, mais vulneráveis aparentemente nos tornamos. À medida que introduzimos mais tecnologia sofisticada, novos riscos proliferam a uma taxa exponencial. As tecnologias da informação actuais facilitam o crime organizado internacional e auxiliam o terrorismo, sendo hoje uma ideia comum que os riscos que enfrentamos são mais catastróficos do que os do passado porque são agora globais.

Os atentados de 11 de Setembro de 2001 trouxeram para as luzes da ribalta uma relação dialéctica entre dois mundos, o pós‑moderno e o moderno. O fosso entre ambos torna possível a um deles, o emprego de uma “violência expressiva” contra o outro, explorando uma visualização aterradora, graças ao impacto simbólico dos actos de violência num mundo globalizado1. Assim o emprego efectivo da violência na era da globalização depende crescentemente da sua forma simbólica2.

Esta forma simbólica apresenta‑se como uma característica imputável a diferenciais de potencial militar entre actores, com aqueles situados na curva inferior do desenvolvimento tecnológico a recorrerem a esta violência como método de maximização do impacto psicológico das suas acções destruidoras, muitas das vezes emuladas de um concreto espírito de auto‑sacrifício que busca as suas raízes fundamentais e justificativas no tradicional conceito de honra dos guerreiros. A manutenção da honra é assim um dever que deriva dos mais importantes sacrifícios – não apenas auto‑infligidos mas também impostos a outros3.

Pela forma como são interpretadas as acções militares dos mais diversos grupos fundamentalistas, o mundo ocidental parece ter perdido a noção de honra do combatente (ou esqueceu‑a) e das formas de guerra expressiva a ela associadas. Através da instrumentalização da guerra, o Ocidente pode ter atingido um ponto onde não consegue compreender o elemento expressivo da guerra4. Ao catalogarmos os actos terroristas como bárbaros, cobardes, irracionais, estamos a formatar um estereótipo de fácil assimilação pública para a violência e que não insere esta mesma violência no respectivo contexto social. Por mais repugnantes que sejam os actos de terrorismo, eles são tudo menos despidos de significado.

A industrialização trouxe consigo o fim da dimensão existencial da guerra no mundo ocidental. Mesmo se olharmos para o Japão e o seu passado associado não apenas aos guerreiros Samurais (com o Bushido como seu código de honra e o Hagakure, de 1716, que ensinava a importância do auto‑sacrifício) mas também aos kamikazes, verificamos a valorização e a atribuição de um significado à morte. A honra, a coragem, e a lealdade, davam por sua vez significado à vida (a segunda metade do século vinte veria a progressiva erosão destes valores). O último vestígio de consagração, ainda que individual, da dimensão existencial da violência no Japão foi protagonizada em 1970 por Mishima Yukio, quanto este escritor tentou efectuar um golpe de Estado no Japão, sob a justificação de que os bons valores guerreiros se haviam perdido completamente5. A sua intenção em destituir o governo japonês, revelou‑se uma acção infrutífera, que culminaria no seu suicídio segundo a tradição Samurai (com o seppuku). A sua revolta seria rapidamente esquecida bem como o seu apelo a uma juventude que prezasse mais as noções de honra, lealdade, e coragem (sem intenção de apropriação mili­tarista como no passado recente).

Mas a dimensão existencial da guerra sobreviveu no mundo não ocidental. Em África a violência era (e é) a única forma autêntica de auto‑afirmação perante poderes que se encontram acima dos grupos que as praticam. A forma inumana como exercem esta violência serve muitas das vezes o propósito de elevar o seu estatuto perante os seus opositores, que os consideram “desprezíveis” ou “negligenciáveis”6. No mundo árabe a lógica não foi diferente. Na verdade, a persistência desta dimensão existencial da guerra acabou por ser transposta para os grupos terroristas e insurgentes que efectuam os atentados nos quais os seus actos de terror não têm apenas um significado expressivo mas também existencial. Até o suicídio pode contribuir para a afirmação da vida (do grupo).

Para as sociedades ocidentais esta lógica é alienígena, pois já não permitimos aos cidadãos que afirmem a sua cidadania ou a sua humanidade através de actos violentos, forçando por isso a um desinteresse na estilização da violência, no seu significado e variabilidade consoante aqueles que a empregam. Para o Ocidente, a compreensão da guerra parece ser assim algo de ambíguo: fingimos que sabemos o que é, mas temos dificuldades em entender os nossos inimigos, tão grande é o fosso psicológico existente.

Ora esta compreensão torna‑se cada vez mais importante, isto se quisermos crer no ressurgimento de sociedades guerreiras e na reprimitivização do ser humano7, à medida que os conflitos tendem assemelhar‑se mais como antigas guerras entre tribos primitivas do que como guerras convencionais8. Ao abrigo deste raciocínio, as forças militares ocidentais tendem a enfrentar inimigos cujas tácticas desafiam qualquer lógica ou ética, não sendo por isso soldados, mas guerreiros habituados à violência e motivados apenas pela raiva9.

Este despojamento de “princípios humanizantes” por parte destes inimigos entra em choque quer com a noção ocidental do cidadão‑soldado quer com as forças militares profissionais, ambas pautadas por códigos de conduta e regulamentos disciplinares com tanto de forma quanto de conteúdo humanista, no que concerne à actuação em teatros de guerra. A solução mais óbvia passa pela criminalização dos inimigos do Ocidente, negando‑lhes o título de guerreiros que eles reivindicam para si mesmos. Assumimos que a guerra passou a ser uma actividade criminosa, dissolvemos a distinção entre as duas, alavancados na justificação de que a natureza da guerra foi alterada, mas, ao mesmo tempo esta dinâmica parece estar a levar‑nos para a perda de contacto com a verdadeira natureza da guerra. Ao pretendermos crer que a natureza da guerra foi modificada, fruto da ênfase da tecnologia sobre o homem, escamoteamos a realidade de que a violência não é suprimida pela tecnologia, porque o factor humano é o âmago desta dialéctica.


2. Influências Históricas Ocidentais

Se os gregos eram uma sociedade tribal, então eles são a nossa tribo. Deles obtivemos a noção europeia de modernidade, sendo a fonte daquilo que filosoficamente entendemos sobre a vida e o mundo. Para os gregos, a vida era conflito ou competição. Não que glorificassem a guerra – antes pelo contrário, questionavam a sua moralidade – mas aceitavam‑na como inevi­tável, fazendo parte da condição humana e como factor de vitalidade de uma sociedade. Ao aceitarem este particularismo deram o primeiro passo para a humanização da guerra. Para Heraclito “a guerra era o pai de todas as coisas” e uma dialéctica de opostos governava o universo numa constante “luta” (agon) pelo progresso do homem. O conflito potenciava a unidade. Se a vida e a morte eram uma só, tal como o dia e a noite, a guerra e a paz não eram excepção.

Segundo Aristóteles a guerra era uma forma de actividade aquisitiva. Quanto mais próspera fosse a comunidade mais aquisitiva (e agressiva) ela se tornava, sendo a materialização de um interesse colectivo enformado na figura do Estado. Este teria ao seu dispor para o defender ou alargar o seu poder, cidadãos‑soldados10 e militares profissionais. No entanto, Aristóteles via nos primeiros mais virtudes, pois o seu apego à terra levava‑os à exponenciação de qualidades como a coragem, a motivação, o dever, o patriotismo, e acima de tudo a crença numa causa. Os militares profissionais eram melhor a matar do que a morrer, sendo os primeiros a fugirem quando em inferioridade numérica, pois nada tinham que os ligasse ao Estado que lhes pagava11.

O pensamento militar grego encontra‑se plasmado nos escritos de his­toriadores como Heródoto, Tucídides, e Xénofonte, os quais compensam um relativo desconhecimento da “coisa militar” por um enorme conhecimento do comportamento humano. Para os gregos a guerra era vista em termos altamente conceptuais, considerando, por exemplo, como de extrema importância a firmeza da decisão do comandante aquando da batalha. Filosofi­camente, os gregos não viam nem na conduta individual dos soldados nem na superioridade técnica de um Exército a maior vantagem. Esta estava na força das ideias sobre a guerra que modelavam e reflectiam o contexto social em que estas eram formuladas. Os recursos só eram importantes se se soubesse tirar partido deles. O dinheiro só seria útil se se soubesse como o gastar. A tecnologia só tinha vantagem na forma como seria aplicada. Aqui o Estado tinha um papel fulcral, pois a aplicação racional dos meios por intermédio da razão conferia uma instrumentalidade à ideia de guerra, numa noção quase que Clausewitziana da guerra como razão do Estado. A guerra não estava separada da vida política: era a vida política, o supremo acto de cidadania. O Exército era a reunião dos cidadãos em armas na defesa da cidade contra outras cidades, o que culminou em última análise na unificação destas numa comunidade de língua, religião, costumes, e formas sociais de vida comuns. Se calhar, se não tivesse havido guerra talvez a civilização grega não tivesse existido como a conhecemos, e a primeira separação entre aqueles que faziam parte do seu mundo e os bárbaros tivesse surgido muito mais tarde.

Associada a esta noção de barbarismo encontrava‑se ainda o reconhecimento e o respeito pelo valor do inimigo, “pois o orgulho no inimigo potenciaria a valorização no sucesso que seria alcançado”. A ética guerreira não considerava as derrotas como desgraças (basta atentar nas poesias líricas elaboradas em torno de várias derrotas), mas uma humilhação pelo inimigo, esta sim seria o pior dos desideratos.

A interpretação grega da guerra foi assim importante porque foi absorvida pelos romanos. Na verdade à experiência grega foi conferida uma sistematização por parte dos romanos, o que transmitiu uma noção mais instrumental da guerra e do guerreiro como instrumento do Estado. À medida que as fronteiras do império se foram expandindo, a guerra tornou‑se mais numa profissão do que num dever cívico. A legião materializou o apogeu do poder romano e da vantagem do respectivo Estado. Fruto do treino rigoroso das tropas e da aplicação impiedosa da força, a máquina de guerra romana tornou‑se quase que imparável, numa espécie de Deux ex‑Machina. A sistematização de procedimentos operacionais gerou uma assimetria táctica face aos inimigos que não obrigava ao dispêndio de grandes doses de génio militar para vencer as batalhas (ao contrário dos gregos, os romanos tiveram poucos grandes Generais). O enorme manancial de recursos humanos ao seu dispor permitia‑lhes, mesmo em caso de derrota, substituírem com alguma facilidade as forças entretanto perdidas12. O cidadão romano era treinado para a guerra, e para uma guerra em escala crescente. Na verdade, as portas do Templo de Janus, que se fechavam simbolicamente quando havia paz, só o estiveram por duas vezes durante a história da República.
A disciplina férrea a que os soldados estavam submetidos fica perfeita­mente ilustrada pelo facto de ao longo dos dezassete anos que as tropas romanas combateram Aníbal, nunca houve a mais pequena revolta (ao contrário do Exército de Alexandre “O Grande” que ao fim de onze anos consecutivos de campanhas o abandonou). Seria o afrouxamento desta disciplina e do treino militar que ditariam o princípio do fim do império. No final do século III, o Estado só conseguia recrutar um por cento da população, pelo que o império começou a recrutar soldados nas tribos germânicas, o que não parece ter desagradado à maioria dos seus cidadãos, que por esta altura já nem sequer lhes era permitido transportar armas, quanto mais combaterem. A miscigenação romana com os bárbaros do Norte traria amargas consequências para Roma. A fragmentação do império seria a pior delas.

A germanização do Exército romano associado ao decréscimo acentuado da experiência de guerra dos seus cidadãos levou a uma erosão da noção de afirmação da humanidade através da guerra. Parte dos louros advieram do Cristianismo. Os cristãos eram soldados mais relutantes do que os pagãos, pelo que aquando da primeira queda de Roma (410 D.C.) Santo Agostinho racionalizou a derrota como uma vitória da cidade de Deus sobre a cidade do homem.

A degradação do império Bizantino levou à medievalização da guerra. A ênfase temporária de Bizâncio novamente na disciplina, na coesão táctica no campo de batalha e no correcto planeamento dos apoios logísticos, começou a dar lugar a justificações de vitórias e derrotas em batalhas com base na Divina Providência, em detrimento da acção humana. A guerra medieval foi caracterizada por raides e escaramuças frequentes e em resultado da luta pela posse de castelos fortificados. A noção de batalha decisiva perdeu o seu lugar central no imaginário militar da época. Nas guerras medievais o objectivo era punir o inimigo mas não o submeter.

A Renascença trouxe consigo um refrescamento do pensamento militar e do papel da guerra nos assuntos dos Estados. Nicolau Maquiavel rompeu com os escritos tradicionais medievais que ofereciam definições para a partir destas fazerem derivar conclusões sobre o alcance da ambição humana e os limites da acção do homem. Ele quis saber como é que a guerra poderia tornar forte um governo, como poderia auxiliar a população a recuperar ou a manter a sua liberdade, e como é que poderia fortalecer o poder do Estado, recorrendo para tal aos escritos gregos e romanos13. A obra de Maquiavel foi a primeira tentativa renascentista de popularizar o pensamento militar clássico, de efectuar uma análise simbiótica entre o presente e o passado14. A vitalidade do pensamento de Maquiavel resultou dos dilemas por si enfrentados na defesa das cidades‑estados, nas quais os respectivos cidadãos (mais comer­ciantes do que outra coisa qualquer) não viam qualquer apelatividade na defesa das mesmas, preferindo recorrerem à contratação de mercenários15.

O século dezoito e o Iluminismo trouxeram consigo a recuperação da “fibra guerreira”. O impacto resultante da ciência com os seus métodos e princípios foi sentido mecanicamente na guerra. Espaço, tempo, massa, força, e momento tomaram o lugar da Divina Providência e da sorte de Maquiavel.

O Iluminismo fez guerreiros à imagem da sociedade que serviam, verdadeiros agentes morais, conscientes da sua humanidade. O século dezanove e a Revolução Industrial modificaram os guerreiros tornando‑os mais exis­tenciais do que os seus congéneres do passado. As suas preocupações rondavam agora também não apenas as consequências das suas acções mas também o facto de serem eles próprios dínamos dessa mesma acção (o homem era agora mais omnipotente mas também mais omnisciente). As guerras tornaram‑se mais destrutivas, ou nas palavras de Clausewitz, “a guerra aproximou‑se mais dos seus limites externos”16.
A Revolução Francesa e surgimento do Estado‑Nação, possibilitou a formação de grandes Exércitos, motivados e bem comandados. Pela primeira vez o ethos guerreiro foi alargado a toda a nação, não apenas à classe militar. Clausewitz viu neste acontecimento – guerreiros dispostos a morrer e a matar – elementos existenciais da guerra, os quais se tornariam sub‑itens da psicologia nacional dos Estados. Hegel, seu contemporâneo, via a guerra como um factor contingente da história; era parte da condição humana (algo de muito ateniense) e inerente aos Estados. A seu ver, as guerras só terminariam quando os seres humanos não sentissem necessidade de expressarem a sua humanidade, quando ninguém os estimasse como guerreiros, e desta forma eles já não teriam estima por si próprios17.

Esta situação eliminaria a ligação que deve haver entre o guerreiro e a sociedade. O guerreiro está preparado para morrer pela honra ou pela bandeira. O guerreiro que morre pela honra é um agente moral porque a honra é algo que fica para além do reino do instinto de auto‑preservação. Os soldados vivem em reconhecimento dos seus co‑cidadãos muitas vezes nos livros escritos após a sua morte. Nas sociedades guerreiras, eles vivem ainda na estima em que são tidos pelos seus inimigos.

A Nação em armas e a disposição dos cidadãos em morrerem por ela permite ao Estado funcionar, fruto da consciencialização dos mesmos de que a defesa da liberdade é um valor universal18. No entanto o incremento do poder de fogo veio tornar impessoal o combate e o sacrifício do guerreiro, que Hegel não considerou despropositado, antes, classificando‑o como o supremo sacrifício porque se tornou parte de uma massa19.

Nesta época, Napoleão foi aquilo a que se pode chamar um guerreiro existencial. Através da sua busca pela glória ele estava preparado para transformar tudo em áreas militares: o privado em público, a vida em guerra, o indivíduo numa vontade colectiva. Ele preparou‑se para requisitar a nação francesa em nome da austeridade e do sacrifício, transformando‑a num instrumento da guerra.

O início da Guerra Civil Norte‑Americana materializaria um novo salto na guerra moderna ao testar a determinação não apenas dos Exércitos de duas sociedades, tornando‑as também participantes activas nos desfechos das guerras. Era o prelúdio de que no conflito entre nações, a vitória e a derrota cedo deixariam de ser pormenores de natureza técnica a serem decididos entre forças opositoras, mas sim conclusões finais sobre a viabilidade dos povos e do seu modo de vida.

A guerra moderna atingiu o seu clímax no último mês da Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos lançaram duas bombas atómicas sobre o Japão. A evolução da investigação nuclear fez com que em meados da década de cinquenta o sistema ocidental de condução da guerra tivesse chegado a um impasse. George Kennan, o pai do containment, viu o empate nuclear como a última traição ao humanismo, uma ausência de fé na capacidade humana de resolver dilemas políticos através da razão. O que o perturbou não foi tanto o facto de as armas nucleares eliminarem a dimensão existencial da guerra, mas antes que estas não eram reconciliáveis com o uso da força instrumental da força, ou seja o seu emprego político em vez de moldar a vida humana poderia destruí‑la20.

Naturalmente a tendência foi no sentido de tentar humanizar a guerra por maximização do potencial tecnológico21. Como Martin van Creveld questiona, este avanço da expressão da humanidade por parte dos militares ocidentais transformou a forma de combate ocidental em algo de puramente instru­mental, resumindo‑se à avaliação do que é necessário para “matar” os adversários. Em contraste, as estratégias não ocidentais colocam uma questão bastante diferente: O que é necessário para persuadir os soldados a morrerem pelas suas crenças?22 Como os gregos, continuam a acreditar que a guerra pode servir para se afirmarem na vida. O Ocidente já não, pois não pode matar outros sem perder ao mesmo tempo o seu auto‑respeito.

Creveld pergunta se os soldados ocidentais estarão dispostos a morrer pelas suas crenças? A resposta que obtém assenta na relação entre os meios e os fins, ou seja a essência da forma de guerra ocidental. Porque é que alguém deve colocar a sua vida em risco em nome do interesse de um Estado ou objectivo político, isto por oposição ao modo de vida de uma sociedade? Nesta perspectiva pode‑se dizer que a vida de um soldado não se perde é “desperdiçada”. No nosso mundo pós‑moderno, a morte é a negação da vida em todos os sentidos do termo. Paradoxalmente, outros não hesitam em “desperdiçá‑la” em nome de causas que os colocarão no panteão dos mártires (ou heróis se assim o quisermos entender). Para Creveld, não é possível motivar os soldados de forma a prepará‑los para a eventualidade e a necessidade de terem de morrer, isto segundo os moldes do passado, porque os Exércitos ocidentais combatem de uma forma que não permite aos seus soldados manterem a sua auto‑estima como seres humanos, pois estes já não combatem por eles próprios, mas por causas políticas23.

Em parte, os ocidentais tentaram rectificar esta lógica através da crença (infundada ou não) de que a guerra humanitária reflecte a nossa humanidade abrangente ou o nosso sentido de identidade colectiva – que se pode estender aos nossos inimigos (se eles o quisessem). Mas este novo humanismo é difícil de enquadrar com sucesso no campo de batalha quando tal pode acarretar a ocorrência de baixas entre os nossos soldados em taxas incompatíveis com a nossa forma de guerra humanizante ou quando pode implicar a destruição de um elevado número de vidas dos nossos inimigos. Torna‑se difícil conduzir uma guerra quando esta implica a necessidade de matar um elevado número de pessoas, o que resvala para o campo da consciência dos soldados ocidentais, ou melhor da sua auto‑consciência quanto às consequências dos seus actos. Os militares ocidentais passaram a ser assombrados por aquilo a que o filósofo Paul Ricoeur chama de “hermenêutica da suspeição”24.

Este novo humanismo militar tem a sua fonte mais recente nos Estados Unidos25. Se no início as formas de condução da guerra por parte dos Estados Unidos eram um reflexo do pensamento estratégico europeu, a Guerra‑Fria com os seus rituais de ameaças nucleares e manobras simbólicas, contribuiu para dissimular a erosão do belicismo europeu. A guerra que era em tempos o núcleo duro da actividade das sociedades europeias passou a ser observada por estas a uma distância apreciável26.

De certa forma, os Estados Unidos e a Europa mantiveram o modelo grego. A guerra ainda é um sistema de pensamento que exige disciplina, iniciativa, e ingenuidade da parte dos militares a todos os níveis. Ainda é uma ciência acessível à razão humana27. No caso americano, é uma experiência democrática visto que combatem em guerras humanitárias, ainda que parece terem‑se tornado em prisioneiros da paz28. No entanto o modelo americano destoa do modelo ocidental em dois aspectos: (1) na ênfase que confere à tecnologia e na sua compatibilização com o humanismo ocidental; e (2) parece conduzir‑nos para um mundo pós‑humano.

A sua preocupação em tornar a guerra mais humana para os seus soldados e telespectadores na América torna‑os mais vulneráveis a estratégias assimétricas como presenciámos em 11 de Setembro de 2001, e assistimos actualmente no Iraque. Em suma, a dimensão instrumental na forma como os Estados Unidos conduzem as guerras ainda é em parte Ocidental, sendo empregue para resolver problemas e gerir crises e riscos. É mais civilizada no sentido em que é menos emotiva e mais “razoável”. Mas esta estratégia instrumental americana apresenta riscos. Ao aferirem o que é necessário com base no humanitarismo, tornam‑se mais vulneráveis a adversários que não partilham noções similares de condução da guerra29.
A tecnologia tem aqui uma instrumentalidade quase que filosófica, sendo algo mais do que uma mera conjugação de hardware, pois afecta a forma como a guerra é conduzida. Sendo usada com base na aplicação da razão, pressupõe que uma sociedade mais racional, ou que o creia ser, irá explorá‑la de forma a que o inimigo possa “ver a razão”, neste caso pela lógica inelutável do poder de fogo. A guerra, na tradição Ocidental, pode ilustrar assim uma espécie de “capital cultural” explorado em proveito próprio30.

A apelatividade da tecnologia na condução da guerra moderna permite ofuscar a realidade de que os mísseis de cruzeiro e os raides aéreos são os meios preferidos de sociedades que já não convivem com facilidade com o conceito de guerra, especialmente no que concerne às baixas que delas resultam, o que não deixa de ser uma vertente deste humanitarismo31. Na verdade, um sentimento anti‑belicoso32 que atravessou vertical e horizontalmente as sociedades ocidentais na última década do século vinte, pareceu ter‑se instalado, fruto da concatenação de factores como: o declínio do comunismo ortodoxo (uma ideologia intrinsecamente belicosa); a dissemi­nação da democracia (uma forma de governo “teoricamente mais pacifista”); a expansão do comércio (tornando a guerra entre Estados que sejam parceiros económicos, senão totalmente irracional, pelo menos crescentemente one­rosa); a redução na dimensão das famílias ocidentais (cada filho é cada vez mais valioso e indispensável); o impacto psicologicamente magnificador da televisão no que à perda de vidas humanas concerne (tornando as demo­cracias mais receosas quanto a baixas resultantes das suas intervenções militares); e talvez a dissipação da fé religiosa e com ela o colapso na confiança da existência de um mundo para além da vida, colocando uma ênfase na necessidade em homem se manter vivo o mais tempo possível neste mundo, aproveitando‑o da melhor forma (“cultura pós‑moderna do indivi­dualismo” e do cosmopolitanismo)33.

No entanto, parece existir um certo paradoxo. As sociedades ocidentais deixam transpirar a noção de não quererem exigir demasiado aos seus soldados, mas também não querem parecer relutantes ou insensíveis face ao sofrimento humano que ocorre um pouco por todo o globo e que entra diariamente pelos écrans de televisão.

Esta contradição ficou patente aquando da intervenção americana na Somália que se pode configurar como um fracasso na percepção cultural mútua entre as partes intervenientes. A entrada americana em território somali trouxe ao de cima factores como a diferenciação cultural, a mútua incompreensão linguística, e estereótipos xenófobos existentes entre as partes34. Factores aparentemente inofensivos como o voo dos helicópteros sobre áreas urbanas, rapidamente se tornaram em questões conflituais que culminaram no dia 3 de Outubro no famoso tiroteio que deixou mortos dezoito Rangers e centenas de somalis35. A experiência foi frustrante porque os norte americanos não entenderam porque é o outro lado não lhes permitia que fossem humanitários. Para além do mais as imagens disseminadas pelo mundo de corpos queimados de militares americanos a serem arrastados pela terra, teve um impacto assinalável na opinião pública norte americana, mas também junto dos adversários de Washington. O que nos leva a outro tópico: a massificação da informação na modelação da imagem cultural.

A homogeneização dos meios de informação ocidentais de carácter global, aliado ao seu predomínio linguístico e cultural (CNN, Sky News, Bloomberg) por oposição a iniciativas mais recentes por parte do mundo árabe (Al‑Jazeera e Al‑Arabya) e da China (CCTV‑5) contribuiu para o estabelecimento de uma canal de informação unidireccional entre civilizações e culturas. Ou seja, aquilo a Joseph Nye designa de uma parte do soft power norte‑americano36, potenciou uma “convergência virtual”, uma variante da aldeia global, na qual o mundo não‑Ocidental acaba por conhecer melhor os Estados Unidos, do que os Estados Unidos conhecem o mundo não‑Ocidental. Esta “globalização da percepção” permitiu a instrumentalização política do discurso de vitimização dos pequenos Estados face à sombra de poder americana, alargando por vezes o fosso existente entre estes dois mundos. Por outras palavras, hoje em dia é mais fácil compreender um norte‑americano do que um árabe ou um chinês.

Transposto para a dinâmica da guerra este défice de percepção reflecte‑se na constatação de que a forma ocidental de condução da guerra é efectiva apenas contra outras civilizações ou Estados, não contra sociedades não‑civis que normalmente. De forma mais fácil, tendemos mais a demonizar ou desumanizar segundo o nosso critério próprio de humanismo, do que a tentar compreender.


3. O Mundo não‑Ocidental

A guerra é um produto da cultura. O Ocidente tem colocado a origem das guerras na natureza humana, tanto para o melhor como para o pior (com Tucídides e Hobbes inseridos na última variante)37. Outras sociedades têm analisado a guerra sob um prisma mais contemporizador da natureza humana, vendo‑a não apenas como uma necessidade, mas também sob um filtro religioso: Zen no Japão; Confucionista, Taoista, e Budista na China; Induísta na Índia; e Islâmico no Médio Oriente. O que estas sublinham é que a necessidade da guerra é limitada porque está acoplada à condição humana, mas que esta necessidade acaba por desestabilizar a harmonia do mundo e a justiça de Deus. A sua dimensão de necessidade é exclusivamente social. Se uma sociedade estiver em harmonia ela poderá efectuar e combater guerras de forma mais eficaz do que uma que não esteja. Esta é a mensagem do Taoísmo, o que justifica uma abordagem à herança chinesa.

a. A China

O Taoísmo é um dos três sistemas filosóficos e ético‑religiosos chineses. Os outros dois, o Confucionismo e o Budismo, empregam a palavra Tao para referirem o caminho da virtude (de uma vida de virtude). Mas no Taoísmo, o Tao é o Caminho: é o princípio universal de todas as coisas. Pode‑se dizer (discutivelmente) que é o Caminho da Natureza como um todo mais do que uma forma específica de condução da vida no seio de ordem natural. A união com o Caminho só é alcançada pela redução do desejo aquisitivo, pelo que o guerreiro Taoista compreende que existem limites à ambição humana. No Tao Te Ching (O Caminho e o Seu Poder) pode‑se encontrar uma advertência ao soldado. Que use as armas apenas quando necessário:

“Recorre às armas apenas quando não existir outra alternativa. Um líder militar inteligente não é agressivo com o seu poder militar. Um soldado arguto não é colérico. A isto chama‑se a virtude de não competir”38.


Esta afirmação pode ser vista como bastante mística, mas devemos ter em atenção que a obra em questão era um manual prático para os líderes chineses. Os filósofos chineses desenvolveram um sistema de análise e com­preensão da velocidade com que uma guerra se pode transformar em algo de puramente irracional. Ao contrário dos seus congéneres ocidentais, focaram a sua atenção nas consequências, e não nas intenções. Erradamente, esta lógica levou a que se considerasse a civilização chinesa como mais pacífica que as outras, esquecendo‑se que ela empregou a força de forma instrumental em períodos de expansão imperial, não se distinguindo neste aspecto das suas congéneres39. Uma outra deturpação foi a interpretação feita dos clássicos militares chineses, do qual o mais mediatizado é a Arte da Guerra de Sun Zi40. Este é simultaneamente um texto filosófico, taoista e um manual militar. A forma de guerra chinesa era humanitária porque era o produto de um pensamento filosófico destinado a preservar o sistema, e não a transformá‑lo. Ao fazê‑lo, foi instrumental porque a guerra continuou a ser uma actividade do Estado.

Mesmo assim uma diferença fulcral existe entre a China e o Ocidente, aquela nunca teve uma forte tradição guerreira. Se olharmos para os sete clássicos militares chineses verificamos que estes que se tornaram de leitura obrigatória durante a Dinastia Sung (960‑1279 D.C.) para todos aqueles que queriam enveredar por uma carreira de armas, foram abolidos na Dinastia Qing (1644‑1911) e recuperados do esquecimento pelos Nacionalistas de Chiang Kaishek na década de vinte41.

Não obstante terem escrito e filosofado mais sobre a guerra do que qualquer outra civilização, os chineses desenvolveram uma forma diferente de compreensão da mesma, isto que no que concerne ao seu carácter e natureza. A principal diferença, segundo Martin von Creveld, reside na forma fenomenalística como a encaravam. Se para os filósofos ocidentais como Aristóteles, a guerra era instrumental (uma dialéctica entre meios e fins), para Sun Zi, era um produto da necessidade e que deveria ser gerida de forma a não desestabilizar o Tao 42. Enquanto no Ocidente se pregavam Homessas ao uso da força máxima e à noção de batalha decisiva, na China fazia kow‑tow ao uso mínimo da força. Qualquer outro tipo de emprego desta era considerado como perigoso. A mensagem era clara43. Evitar a guerra sempre que possível, de outra forma, encurtar o mais possível a sua duração e combater por recurso a estratégias indirectas (explorar os erros do inimigo).

A guerra assimétrica (ou guerra não ortodoxa na linguagem de Sun Zi) mereceu‑lhe uma atenção especial. Para ele o objecto da guerra não era impor a nossa vontade sobre o adversário mas minar a vontade deste em nos resistir, tal seria melhor conseguido através da assimetria. “Ataca o forte através da sua força” (ao contrário da noção ocidental de não enfrentar os pontos fortes do inimigo). A força evapora‑se com facilidade. Os fortes são sempre excessivamente confiantes, o que os leva a distenderem‑se logísticamente e a exaurirem a sua força. Nesta perspectiva, a noção de “ponto de culminação” pode ser recentemente para o Ocidente mas não o é para a China.

Uma força militar é como água, não deve ter forma, mas deve ter essência. A ênfase vai no sentido de elevar o génio militar mediante a capacidade de este se adaptar ao génio do adversário (ao contrário do génio militar ocidental que realça a capacidade de fazer com que o adversário combata segundo as nossa regra). Assim se compreende a atenção dada pelos chineses às operações psicológicas, operações encobertas e clandestinas, e acções de desinformação.

Quanto à noção de vitória ela é também diferente. O principal objectivo da guerra não é tanto a vitória mas a sobrevivência. O flanqueamento do inimigo e a sobrevivência às acções deste é tudo (o que não é uma perspectiva Ocidental de vitória, a qual visa restabelecer o status quo ou a punir um inimigo que o pretenda alterar). A ideia imperial chinesa de vitória é sobreviver – vencendo a longo prazo.

b. O Japão

No Japão Imperial, a guerra assumiu igualmente uma dimensão ritualística. Quando começaram a importar armas de fogo em finais do século dezasseis, os japoneses rapidamente trataram de melhorar as suas capacidades e alargar o leque de emprego das mesmas, não ficando a dever nada à imaginação. Por exemplo em 1575, na batalha de Nagashino, um senhor da guerra empregou cerca de três mil mosquetes (tanegashima) para deter o avanço do adversário44. Este emprego massivo das armas de fogo foi de tal forma inovador para a época que só apareceu pela primeira vez na Europa cerca de sessenta anos depois. A nível interno, o mosquete materializou‑se como a arma de base dos Exércitos japoneses que alguns séculos mais tarde seriam dos melhores do mundo.

Este emprego das armas de fogo era inconsistente com a visão humanitária da guerra. As armas de fogo tornaram a guerra menos ritualística e mais destrutiva, de tal forma que morrer se chegar sequer a enfrentar o inimigo cara‑a‑cara era uma afronta para a tradição Samurai. A espada era o símbolo da posição do Samurai na sociedade (apenas os Samurais podiam transportar duas espadas). As melhores espadas eram propriedade dos guerreiros mais ricos, e ser um artesão de espadas era uma das mais prestigiadas profissões45. A espada e o seu correcto manuseamento tinham uma importância espiritual na vida do Samurai. Tal não significa dizer que o Samurai não tivesse objectivos instrumentais na sua gestão da violência. Na verdade ela era o reflexo das ambições políticas dos Senhores Feudais aos quais o Samurai pertencia.

O puritanismo Samurai acabou por entrar em colisão com o processo de modernização do período Tokugawa (1640‑1868) cujo desenvolvimento punha em causa o seu estatuto, pelo que até à imposição definitiva da paz, eles continuaram a lutar por objectivos de uma forma especial, ritualizada46.

Aliado à tradição Samurai o Budismo Zen também contribuiu para o perfil do guerreiro japonês. Ao definir através de um código de honra – o Bushido, que foi importado da China – as obrigações mútuas do senhor e do vassalo, o espírito militar recebeu um código de honra distinto. Ainda que o uso destrutivo da espada por parte do guerreiro Samurai fosse contra o propagado pelo Budismo (a compaixão) em última análise a espada era empregue para defender uma forma de vida, na qual o Samurai abdicava voluntariamente da sua vida em prol do Senhor que servia, o que mitigava o poder mortífero da sua espada e conferia uma tonalidade moral à sua missão. Quando em 1716 surgiu o Hagakure (a Bíblia da ética Bushido) o pouco que havia do ethos humanista desapareceu. Ao assumir que os guerreiros já estavam mortos, e que era expectável que eles morressem ao serviço do seu Senhor, só lhes restava aguardarem a consumação desse facto. Ou seja, uma religião fatalística era assim a última fonte de valor moral.

No entanto com a integração da ética Bushido numa lógica de Estado no início do século vinte, surgiu um nacionalismo militante, ao abrigo do qual os Generais conseguiram obter recursos morais e materiais que não haviam estado disponíveis na era pré‑moderna. O Bushido generalizou‑se aos mais diversos sectores da sociedade japonesa e rapidamente se auto‑proclamou como um dos elementos essenciais da nação japonesa e das suas forças armadas. Ao soldado era agora requerido que se sacrificasse pelo Imperador. Esta disponibilidade para o auto‑sacrifício adveio não apenas do Bushido mas também da trágica mas bem sucedida vitória obtida sobre os russos (1904‑1905) que injectou nos militares japoneses a noção de que possuíam uma ética militar diferente dos restantes países, a qual se sumarizava em termos como seishin (espírito) e yamato damashii (o espírito combativo japonês). Como na Guerra russo‑japonesa o espírito tinha demonstrado a sua superioridade face à tecnologia (vagas humanas de soldados japoneses enfrentaram tragicamente as metralhadoras russas) levou a que o Manual de Infantaria além de enfatizar a doutrina de armas combinadas, não abdicava do emprego dos assaltos frontais dos Infantes. Em 1926, os manuais doutrinários foram revistos, eliminando‑se deles as palavras “rendição”, retirada”, e “defesa”47.

O militarismo japonês com a sua mensagem nacionalista não obstante as suas trágicas consequências deu uma imagem de modernidade à sociedade japonesa. Foi um misto de palavras conotadas com a modernidade como “inovação” e “criação”, com palavras de carácter religioso como “esperança”, “fé”, e “transcendência”.

c. O Islão

O Ocidente e o Islão desde a sua origem que estiveram separados, inclusive na forma como encaram a guerra. Pode‑se afirmar que o Islão é a religião que possui a maior apelatividade porque permanece como uma linguagem de fé para aqueles que estão sedentos de algo melhor que a vida, algo que transcenda o mundano ou o humano. Muitos daqueles que combatem em seu nome fazem‑no por esta razão. Inevitavelmente isto gera incompreensões. O Ocidente tende a ver o martírio dos crentes como fanatismo. Pelo seu lado, os muçulmanos vêm o desejo do Ocidente em evitar o sofrimento humano e a dor como algo de grosseiramente materialista, argu­mentando que ao retirar a metafísica da guerra, o Ocidente estreitou a sua visão e compreensão sobre o humanismo. Aos olhos daqueles cujo apelo a Deus é a única justificação para a guerra, o humanismo é uma pobre justificação para o sacrifício da vida ou para a sua eliminação.

A obra de Ibn Khaldun, Muqaddimah (século catorze D.C.) constituiu um marco histórico na análise sociológica do mundo árabe. Para Khaldun, que não se conteve em analisar apenas a história (como historiador que era), os seres humanos eram animais pensantes e sociais o que fundamentava os laços de cooperação e a sua busca por estatuto e segurança, sendo esta a base de toda e qualquer civilização. A ausência do poder do Estado (ou de algo que se lhe assemelhasse) entre as tribos nómadas fez com que estas se agrupassem em torno de interesses não apenas comerciais, mas territoriais ou de recursos, gerando a propagação de feudos coesos que se digladiavam entre si a todos os níveis. Era um modo de vida que era bem captado pela máxima árabe: “Eu contra os meus irmãos, os meus irmãos e eu contra os meus primos, os meus irmãos, os meus primos e eu contra o mundo”. Nada podia ser alcançado sem luta, e esta requeria a lealdade da família e do grupo. O conflito era a dinâmica básica da competição política entre tribos que se alargaria à sociedade em geral. A estreita ligação social associada à tradição tribal guerreira intensificou os sentimentos de vergonha ou humilhação quando algum dos vizinhos ou parentes – empregando um conceito tipicamente oriental – “perdia a face”.

O livro de Ibn Khaldun no âmbito da história militar permitiu reconhecer que a lealdade tribal ditava a forma como o conflito era conduzido. O que importa na guerra é a coesão do grupo, não o número de soldados no campo de batalha, o brilhantismo das tácticas do líder militar, ou mesmo o heroísmo individual, ainda que a honra era importante e reverenciada. Uma tribo prevalecia sobre a outra se conseguisse explorar com sucesso as divisões internas do grupo rival, ou quando recorria a estratagemas (que Khaldun designa de “factores dissimulados da guerra”) capazes de ampliarem estas divisões48. Para o historiador, a única forma de conduzir uma guerra com sucesso era através da conexão tribal, pois não via a população urbana que não tinha ligações emocionais fortes – eram meramente funcionais – a apresentar a “endurance” e o espírito necessário a tal empreendimento. Em resumo, a guerra requeria um tipo de coesão social que só se podia encontrar nos grupos tribais49.

Para Khaldun, as cidades com as suas riquezas e luxos traziam decadência para o espírito guerreiro. O objectivo da população urbana não passava pela afirmação da vida na batalha, mas pela defesa desta. Quando em combate, preferiam a defesa ao ataque. A guerra só poderia ser combatida com sucesso se fosse conduzida por soldados que se identificassem socialmente, numa coesão similar ao modelo tribal. Nenhuma autoridade central poderia manter a paz, A segurança dos seres humanos era baseada na confiança existente entre eles e os membros do grupo. Numa sociedade atomizada (Estado ou cidade), a confiança era algo que não existia50.

A leitura da sua obra deixa transparecer uma dimensão existencial para a origem da guerra, ou seja que esta se baseia em sentimentos de vingança que se transpostos para um conflito religioso e justo (uma jihad), podem servir para congregar vários grupos em torno de um único objectivo existencial. Neste campo a religião tem um enorme valor expressivo na mobilização da população; ajuda‑a a projectar um maior e mais profundo significado aos conflitos sociais existentes, sacralizando a violência e legitimando‑a. A religião é uma poderosa força ritual e o martírio um instru­mento útil de guerra51.

Hoje o mundo árabe ainda continua a ser marcado por uma rede de ligações sociais, quase tribais, de alianças baseadas na origem e experiências comuns, e na interacção comercial, não logrando no entanto criar estruturas estatais e Exércitos profissionais capazes de alimentarem a esperança de derrotarem os seus congéneres ocidentais. Neste campo, desde o século dezanove que as experiências têm sido bastante negativas. Tal não significa que o soldado árabe não seja capaz de conduzir uma guerra instrumental, mas a atrofia da sociedade política, a ausência de uma sociedade civil, e uma cultura política débil condicionam seriamente a capacidade do Estado árabe em colocar no terreno Exércitos profissionalmente competentes (pelo menos segundo os parâmetros ocidentais de aferição)52.

O nicho de excelência bélica do mundo árabe está na sua componente tribal, a qual tem vindo a ser adoptada maximalmente por diversos grupos terroristas ou independentistas53. Se repararmos nos conflitos do Líbano, da Somália, da Chechénia, do Afeganistão constatamos que a guerra tribal provou ser particularmente devastadora contra Exércitos de Estados bem equipados e melhor treinados, materializando uma validação dos pressupostos de Ibn Khaldun: ou seja a vingança e a honra são mais pungentes do que a raison d’etat. Esta surgiu na Europa, após aquilo a que Nietzche chamou a “morte de Deus” e as consequências narcotizantes da modernidade. Como previu enfaticamente o filósofo alemão, os europeus iriam procurar no nacionalismo uma panaceia para o seu nihilismo: “o nacionalismo moderno era uma metamorfose da Cruz”54. No mundo árabe o fenómeno foi diferente. O fundamentalismo islâmico (seja ele sufista, xiita, ou sunita) é conduzido em nome da comunidade de crentes (ulema), não do Estado‑Nação, o que lhe confere uma fenomologia grupal55. Expressa o desencantamento com o processo de modernização económica e militar tentado (e pouco conseguido) pelos Estados árabes na segunda metade do século vinte.

Em resumo, se a forma de guerra do Islão é humanitária, é‑o porque a guerra nunca deve ameaçar a segurança conferida ao crente pela pertença deste a uma comunidade islâmica. Esta fé dá ainda uma razão justificativa para uma sua eventual morte na guerra, algo que já não existe na guerra de tipo ocidental.


4. Guerra Pós‑Humana

Actualmente é duvidoso que muita gente que na eventualidade de poder vir a ser conscrita para combater uma guerra, possa sentir verdadeiramente o chamamento patriótico. Mesmo o militar profissional que se voluntaria e que actualmente entra para as fileiras, vê a guerra cada vez mais como um negócio do que uma vocação, uma profissão como todas as outras, com a diferença relacionada com a ansiedade e o medo que gera – ainda que esta catalogação não se aplique a todos os soldados (a sociedade ocidental ainda consegue produzir bons guerreiros). Desde a Primeira Guerra Mundial que vemos a guerra como algo de negativo, sendo a negação da vida pelo que se torna difícil exaltar e fazer compreender as normas e as virtudes do código de honra de um militar, de um guerreiro. A guerra foi e tem sido instrumental e existencial (enaltecendo a honra do guerreiro). Nesta última dimensão os combatentes respeitavam‑se entre si, mas eram também respeitados pelos outros. A instrumentalização pura da guerra tem levado à desvalorização do estatuto e da imagem do militar na sociedade e por inerência no Estado.

A ênfase na tecnologia levou a uma redefinição da nossa condição humana. A crescente relação que se pretende simbiótica entre o homem e a tecnologia gerou uma era pós‑humana. Actualmente existe uma tendência para ver a tecnologia não como uma extensão do guerreiro mas como um substituto seu. A tecnologia tornou‑se na dinâmica interna da guerra contemporânea e o seu objectivo não é compreendê‑la mas melhorá‑la. As acções humanas estão hoje dependentes dos dados enviados pelos computadores. O ciclo de tomada de decisão é curto e a margem de erro menor, pois as consequências de uma má decisão podem ser catastróficas em termos humanos56. A confiança nos dados informáticos fornecidos e nas modalidades de acção que podem ser apresentadas pelo sistema poderão ser facilitadoras da decisão (ao alcance de um click) mas devem obrigar à implementação de sistema alternativos de segurança sob pena de nos subordinarmos ao poder das máquinas57.

A tecnologia tende a estandardizar a guerra e a retirar‑lhe a criatividade táctica e estratégica, enfim o génio humano. A guerra é hoje mais mediática e virtual do que nunca, higienicamente editada sob uma luz verde de imagens de combates nocturnos, ou a preto e branco (lançamento de um míssil sobre um determinado objectivo). O treino de soldados em ambiente de realidade virtual não deixa de ser pernicioso (ainda que financeiramente vantajoso) pois não materializa uma espécie de ritual de passagem, não produzindo expe­riências que marquem o militar para a vida. Como não existe risco, não existe ansiedade, iludindo, distorcendo a realidade autêntica. Quando a missão for cumprida bastará desligar o computador e os monitores58.

Os soldados do futuro estarão emocional e psicologicamente distanciados do campo de batalha. Serão meros técnicos. Ainda que as guerras se continuem a travar elas efectuar‑se‑ão quase sem guerreiros, e a experiência advinda dos campos de batalha perder‑se‑á.

Neste aspecto a curta ficção de Don DeLillo intitulada Human Moments in World War Three, publicada na revista Esquire, é ilustrativa. Basicamente é um comentário sobre o futuro campo de batalha permeado pela tecnologia, nos quais os atacantes nunca vêm os seus opositores, disparando de naves espaciais sobre áreas onde verificam a existência de forças inimigas. O soldado Vollmer (protagonista principal) tornou‑se, à semelhança dos seus congéneres num técnico, sem emoção, medo, coragem ou mesmo resistência física. Como ele observa, chega a ser feliz, porque a guerra é uma série de rotinas59. É o fundamentalismo tecnológico no seu maior esplendor.

Talvez os últimos herdeiros da histórica tradição guerreira residam nas Forças de Operações Especiais, os quais ainda combatem não apenas pelos objectivos que lhes são determinados mas também pelo reconhecimento dos seus pares, fruto do perigo e do risco mais acentuado associado às suas missões. Numa era de maximização da tecnologia, eles ainda representam o engenho humano, combatendo contra as adversidades e com acentuada liberdade de acção. O que os distingue dos restantes é a sua maneira de ser mais do que a valorização de noções materiais, que valorizam em combate as qualidades do inimigo, não as subalternizando (sob o riscos de colocarem em perigo a própria vida). Nesta perspectiva, a admiração que em geral nutrimos por estes militares talvez resida no facto de eles serem o último elo existente com a tradição guerreira do passado, colocando‑nos em contacto com a guerra na sua forma mais tradicional, humana, e existencial de realização – aquela que parece ter sido esquecida60.


5. Preocupações Mais Imediatas e Algumas Conclusões

Como refere Luigi da Porto na sua teoria cíclica da história: “A paz traz a riqueza, a riqueza o orgulho, o orgulho a raiva, a raiva a guerra, a guerra a pobreza, a pobreza a humildade, a humildade a paz, a paz a riqueza e assim por diante”61. Reforçadamente, como fez notar Sir Walther Raleigh, “a guerra é o tema mais recorrente e o argumento da história”.
A modernidade encorajou os povos a reconhecerem‑se como agentes e não como instrumentos das circunstâncias. Uma das consequências da renovação cultural que assistimos ao longo do século vinte – incluindo o fundamentalismo islâmico – foi o facto de que passou a revestir a vida de um novo significado. Se o principal quesito para o poder é assumirmos nós próprios esse poder, o principal quesito para os valores culturais são a melhoria da nossa vida. Se a reavaliação dos valores culturais é uma tarefa, o Estado‑Nação e o nacionalismo são os meios através dos quais eles são prosseguidos.

O domínio militar do Ocidente sobre o mundo foi alcançado em finais do século dezassete através da mistura de conceitos como a disciplina, a capacidade de decisão, e o treino oriundos dos gregos e dos romanos, mantendo‑se hoje através da associação entre a tecnologia e o poder de fogo, numa espécie de simbiose entre o homem e a máquina (guerra pós‑humana) que se prevê que se venha a manter como predominantemente Ocidental (ou mais concretamente norte‑americana) pois não pode ser copiada por mais ninguém62.

O caminho aponta no sentido de uma maior instrumentalização e dimi­nuição do factor humano, o que poderá contribuir para um alargamento do fosso psicológico e emocional entre a nossa sociedade e aquelas que preservarem a tradição guerreira, ou aquilo a que Clausewitz designou de “verdadeira natureza”. Se a guerra nos Estados civilizados é uma operação política, não uma animosidade popular, o contrário é verdade no que concerne às sociedades não‑civilizadas. A sociedade ocidental mudou no sentido em que se humanizou. Segundo esta lógica, e aplicando um estereótipo tão antigo quanto Heródoto, as sociedades não‑civilizadas permaneceram fiéis às suas origens travando guerras pela honra ou pela sua sobrevivência, não pelos Estados ou seus antepassados. Talvez Ralph Peters tenha razão quando afirma que os nossos inimigos (dos EUA) do futuro serão os do passado, e que o Exército americano prefere combater soldados do que guerreiros, porque estes são imprevisíveis e não têm nada a perder.

“Durante uma geração ou talvez mais nós [os Estados Unidos] não teremos qualquer competidor… Os actores violentos que encontra­remos serão Partidos pequenos e hostis, que possuem uma capacidade inesperada e uma determinação incisiva de recorrerem à violência…

Não lidaremos com guerras de realpolitik mas conflitos nascidos de emoções colectivas, interesses sub‑estatais e do colapso de sistemas. O ódio, a inveja e a ganância – emoção mais do que a estratégia – determinarão a tónica do combate63.

Se actuarem desta forma, pode‑se querer acreditar que estes inimigos padecerão de uma capacidade de pensarem estrategicamente ou tacticamente. É perigoso que assim se pense. Como refere Colin Gray, a ideia de estratégia não está confinada ao mundo civilizado. Forças Armadas que declinem em levar a sério pequenas guerras como uma variante da arte militar com as suas próprias regras tácticas, operacionais e políticas – que não estratégicas – estarão a incentivar a sua própria derrota (como foi o caso dos russos na primeira guerra da Chechénia)64.

Este pode ser um dos efeitos colaterais da noção de “convergência virtual da informação”, uma variante da aldeia global, na qual o mundo não‑Ocidental acaba por conhecer melhor os Estados Unidos, do que os Estados Unidos conhecem o mundo não‑Ocidental. Esta “globalização da percepção” permitiu a instrumentalização política do discurso de vitimização dos pequenos Estados face à sombra de poder americana, alargando por vezes o fosso existente entre estes dois mundos. Por outras palavras, hoje em dia é mais fácil compreender um norte‑americano do que um árabe ou um chinês.

A crescente separação tecnológica entre forças armadas ocidentais (e dentro destas entre os Estados Unidos e os seus aliados) e não‑ocidentais tende a gerar num futuro a médio‑longo prazo, soldados que estarão emocional e psicologicamente distanciados do campo de batalha. Serão meros técnicos. Ainda que as guerras se continuem a travar, elas efectuar‑se‑ão quase sem guerreiros, e a experiência advinda dos campos de batalha perder‑se‑á. Assim a instrumentalização pura da guerra poderá descambar micro‑socio­logicamente falando numa desvalorização do estatuto e da imagem do militar na sociedade e por inerência no Estado.

Em resumo, a globalização e a aplicação exponencial dos novos desenvolvimentos tecnológicos à ciência militar parecem estar a acentuar uma dico­tomia entre os conceitos de soldado e guerreiro, entre a guerra instrumental e a guerra existencial, entre a sociedade ocidental e as sociedades não‑ocidentais, podendo encarar‑se como uma variante da polémica conceptualização de Samuel Huntington do conflito de civilizações65.

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· A ideia para este artigo surgiu de uma longa conversa com António Almeida Pires a partir das interpretações feitas à posteriori sobre uma reportagem do programa 60 Minutos da cadeia norte‑americana CBS, emitido em 19 de Dezembro de 2004 na SIC Notícias, e no qual se abordava a questão da convocação de militares (incluindo uma mulher com cinquenta anos) para cumprirem uma missão no Iraque, bem como a pressão exercida pela Associação das Famílias de Militares (EUA) para a não exibição do filme O Resgate do Soldado Ryan na época de Natal devido às cenas de violência e à linguagem “menos própria”. Ainda que tenha beneficiado das suas observações pertinentes e lúcidas relativamente a questões colocadas por alguns filósofos clássicos e modernos sobre a temática da guerra, a responsabilidade pelo conteúdo é exclusivamente minha, o que não inibe o meu sincero agradecimento.
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1 O termo simbolismo aqui empregue pretende ilustrar tanto a ansiedade e a humilhação da vítima como o estatuto, prestígio, e reputação do atacante no seio do seu próprio grupo (neste caso o mundo islâmico). Não se deduza no entanto que lidamos apenas com violência simbólica. Longe disso. A diferença entre anarquistas e terroristas fundamentalistas assenta num ponto: os primeiros querem aterrorizar, e os segundos querem matar o maior número possível de pessoas.
2 Anton Blok; (2001); “The Meaning of ‘Senseless’ Violence” em Anton Blok (Ed), Honour and Violence; Cambridge, Polity Press; pp. 103‑114.

3 Ibid; p. 113.

4 Discutivelmente, talvez o final dos duelos em prol da defesa da honra dos indivíduos tenha sido o último dos esgares da expressividade da violência a nível ocidental. A primeira obra cinematográfica de Ridley Scott (The Duellists) aborda brilhantemente este ponto.

5 A sua acção valeu‑lhe o epíteto de “O Último Samurai”. Como sublinhou num comentário anos antes da sua morte “Temos a tendência para sofrer da ilusão de que somos capazes de morrer por uma crença ou teoria. Mas o que o Hagakure enfatiza é que mesmo uma morte misericordiosa, uma morte vã que não conhece nem flores ou frutos tem dignidade, por ser a morte de um ser humano. Se nós valorizamos tanto a dignidade da vida porque é que não valorizamos também a dignidade da morte?”. Citado em Catarina Blomberg; (1995); The Heart of the Warrior: Origins and Religious Background of the Samurai System in Feudal Japan; Richmond, Curzon Press; p. 193.

4 Numa perspectiva filosófico‑antropológica (mas também Marxista), Franz Fanon afirma que a violência das guerras coloniais europeias em África foi o resultado de os europeus se terem tornado humanos, negando a humanidade a outros, através da imposição de modelos culturais e sociais impróprios para as sociedades não ocidentais. Franz Fanon; (1967); The Wretched of the Earth; London, Penguin, p. 15.

5 Robert Kaplan; (1996); The Ends of the Earth: A Journey at the Dawn of the Twenty‑first Century; London, Papermac; p. 30.

6 Martin van Creveld; (1991); The Transformation of War; New York, Free Press; p. 27.

7 Ralph Peters; (1999); Fighting for the Future: Will America Triumph?; Mechanicsburg, Stackpole Books; p. 52.

6 Ilustrativamente a palavra grega para cidade é polis e para cidadão é polites (literalmente, defensor da cidadela).

7 Paul Woodruff; (1993); Thucydides on Justice, Power and Human Nature – Selections from the History of the Peloponnesian War; Cambridge, Hackett; p. 42.

8 O cidadão romano servia em média sete anos no Exército.

9 Paradoxalmente, Maquiavel não reconhecia a importância das armas de fogo na resolução dos combates, o que se pode compreender pois a sua preocupação era valorizar a dimensão moral e cívica da história militar clássica.

8 Thomas Arnold; (2001); The Renaissance at War, London, Cassell; p. 60.

9 O que o levou a observar que a moral é institucional. Os soldados que não acreditam na causa pela qual combatem em nome de uma comunidade; não serão tão corajosos e aguerridos quanto aqueles que se identificam com a causa.

10 No entanto no final da sua vida Clausewitz (tal como Adam Smith) não parece ter notado que a Revolução Industrial ocorrera, pois não referiu a tecnologia como um factor determinante na condução das guerras.

11 Schlomo Avineri; (1996); “The Problem of War in Hegel’s Thought” em Jon Stewart (Ed), The Hegel Myths and Legends; Evanston, Northwestern University Press; p. 132. Agradeço a António Almeida Pires esta referência.

10 A liberdade morre por medo de morrer, é uma das máximas de Hegel.

11 Esta noção é ilustrada pelo cerimonial ocidental de homenagem ao Soldado Desconhecido.

12 Veja‑se George Kennan; (1997); At a Century’s Ending: Reflections 1982‑1995; New York, Norton.

13 Nesta perspectiva pode‑se afirmar que Hiroshima e Nagasaki foram embaraços para a arte da guerra.

12 Como apropriadamente afirmou o General Patton: “O nosso objectivo não é morrer pela Pátria, mas fazer com que o outros morram pela sua”.

13 Martin van Creveld; (1996); “War” em Robert Cowley e Geoffrey Parker (Eds); The Osprey Companion to Military History; London, Osprey; pp. 497‑498.

14 Agradeço a António Almeida Pires esta observação.

15 Empregue por Noel Chomsky na sua obra de 2001 intitulada: O Novo Humanismo Militar: Lições do Kosovo; Porto, Campo das Letras.

14 Edward Luttwak; (2000); “Peace in Our Time”; Times Literary Supplement, October 6; p. 9. Acedido via Lexis‑Nexis.

15 Leia‑se Russell F. Wigley; (1977); The American Way of War: A History of United States Military Strategy and Policy; Bloomington, Indiana University Press.

16 Veja‑se Dana Priest; (2003); The Mission: Waging War and Keeping Peace with America’s Military; New York, Norton.

17 Veja‑se Anónimo; (2004); Imperial Hubris: Why the West is Losing the War on Terror; Dulles, Brassey’s.

16 Esta lógica é empregue para explicar por exemplo o facto de não obstante os chineses terem inventado a pólvora e o primeiro canhão, estes desenvolvimentos não terem alterado a sua forma de condução da guerra, fruto das suas limitações de integração da tecnologia, ao contrário do que aconteceu com a introdução da pólvora na Europa. Se acreditarmos nesta justificação simplista de “capital cultural” para justificar a não evolução chinesa, estaremos a marginalizar factos tão importantes como o tipo de guerra que o Império do Meio travava (guerra das estepes) onde o canhão tinha um impacto limitado no desenrolar das batalhas. O sucesso militar era medido em termos de capacidade para projectar e manter Exércitos no deserto do Gobi ou no planalto tibetano. A Dinastia Qing neste aspecto foi excelente, pois não obstante a distância enorme que separava as forças do poder central, estas nunca se desintegraram, ao contrário dos Exércitos de Napoleão em 1812, na frente russa. Paradoxalmente, e ao contrário dos seus vizinhos japoneses, os chineses usaram os canhões durante os séculos dezassete e dezoito, então com resultado mais apreciáveis especialmente em áreas urbanas.

17 A síndrome do body bag ou do Vietname (ou por oposição das “baixas zero”) independentemente da maior ou menor coerência da argumentação apresentada não parece colher actualmente muita reverberância na sociedade americana, e o fiasco na Somália com o consequente impacto que teve no mundo islâmico quanto à interpretação da retirada de Washington do país parece agora também algo diluído. Longe vão os tempos das ameaças de Osama bin Laden a satirizar a incapacidade americana em suportar baixas.

18 Martin van Creveld; (1991); The Transformation of War; New York, Free Press; p. 2.

19 Manuel Alexandre G. Carriço; (2004); “Realismo, Guerra e Estratégia no Século XXI”; Revista Militar nº 5; pp. 514‑515. Longe vão os tempos em que um General romano incentivava as suas tropas com frases do género “o que fazemos na vida ecoa na eternidade”. Esta lógica está patente na batalha inicial do filme Gladiador de Ridley Scott.

18 Lara Miller e Charles Moskos; (1995); “Humanitarians or Warriors? Race, Gender and Combat Status in Operation Restore Hope”; Armed Forces and Society nº4; p. 626. É um artigo de leitura obrigatória pois através de entrevistas, os autores explanam as divisões internas na força americana entre aqueles que se viam como militares guerreiros e aqueles que se viam como militares humanitários (isto para além das cisões raciais entre negros e brancos).

19 Os helicópteros dos Rangers levantavam imensa poeira, sobrevoavam frequentemente a cidade, aterravam no centro desta, levantando as saias às mulheres somalis, destruindo telhados de barracas e bancadas de venda de mercadoria. Ilustrativo destas questões é a entrevista do jornalista Mark Bowden a um somali que frequentou uma universidade na Carolina do Sul e que gostava dos americanos mas que considerava as suas acções crescentemente ofensivas (especialmente os voos dos Black Hawk). A animosidade foi crescendo até chegar ao ponto de ser vox populi de que os americanos tinham vindo engordá‑los apenas para que ficassem prontos para irem para o matadouro. Mark Bowden; (1995); Black Hawk Down; London, Bantam; p. 76. O filme de Ridley Scott aborda transversalmente esta questão, não no diálogo mas apenas nas imagens. Não deixa de ser irónico que numa Somália pejada de clãs que lutavam entre si, e dos quais o de Farah Aideed era o mais detestado, a vitória sobre os americanos tenha sido celebrada pela população em geral com a decretação do dia 3 de Outubro como feriado nacional, isto quando não existia qualquer Estado para defender.

20 Joseph Nye; (2004); “Soft Power and American Foreign Policy”; Political Science Quarterly nº3; pp. 255‑270.

21 Donald Kagan; (1995); Sobre as Origens da Guerra e a Preservação da Paz; Lisboa, Edições Temas da Actualidade; pp. 10‑11.

20 Diane Collinson e Robert Wilkinson; (1994); Thirty‑Five Oriental Philosophers; London, Routledge; p. 138.

21 Allastair Iain Johnston argumenta persuasivamente que historicamente a China desenvolveu aquilo a que designa de “paradigma parabellum”, numa lógica de “se queres a paz, prepara a guerra” (si pacem parabellum). Allastair Iain Johnston; (1995); Cultural Realism: Strategic Culture and Grand Strategy in Chinese History; Princeton, Princeton University Press; p. 107.

22 Tanto a autoria como a data da obra não são colectivamente aceites pelos historiadores chineses. As mais recentes investigações arqueológicas apontam para Sun Wu, um nativo do Estado de Qi que viveu por volta de 500 A.C. Há quem aponte a possibilidade de o autor ser uma mulher pois nesta altura existiam mulheres que comandavam tropas. Sun Tzu; (sem data); A Arte da Guerra; Mem Martins, Publicações Europa‑América.

23 Actualmente todos os cadetes das Academias Militares chinesas devem lê‑los. Para uma leitura dos sete clássicos militares veja‑se Ralph D. Sawyer; (1993); The Seven Military Classics of Ancient China; Oxford, Westview Press. Os sete clássicos são a Arte da Guerra de Sun Zi; O Método de Ssu‑Ma; O Wu‑tzu; Questões e Respostas entre Tang Taisung e Li Weichung; As Três Estratégias de Huang Chichung; Os Seis Ensinamentos Secretos de Tai Chung; e Os Métodos Militares de Sun Pin.

22 Martin von Creveld; (2001); The Art of War: War and Military Thought; London, Cassell; p. 119.

23 É curioso notar a maior e mais recente apelatividade da obra de Sun Zi face à de Clausewitz. Talvez parte desta atractividade se deva à maior abstracção filosófica, pensamento dialéctico e complexidade linguística da obra do militar alemão

24 Esta batalha é descrita no filme Ran de Akira Kurosawa.

24 Veja‑se a primeira parte do filme Kill Bill de Quentin Tarantino, para se perceber parte da lógica e da honra associada tanto a quem encomenda uma espada como a quem a fabrica.

25 Para versão cinematográfica da exponenciação destes valores veja‑se o filme O Último Samurai com Tom Cruise.

25 As razões desta transformação são analisadas na excelente obra de Robert B. Edgerton; (1997); Warriors of the Rising Sun: A History of the Japanese Military; New York, Norton; especialmente no capítulo nono “From Chivalry to Brutality” (pp. 305‑331).

26 Os “factores dissimulados da guerra” conferiam uma importância bastante grande à dimensão psicológica da guerra. Como refere um provérbio árabe “Muitas vezes um truque vale mais do que uma tribo”.

26 Leia‑se por exemplo Hrair Dekmejian; (1995); Islam in Revolution: Fundamentalism in the Arab World (2nd edition); New York, Syracuse University Press; pp. 28‑30.

27 Ernest Gellner; (1981); Muslim Society; Cambridge, Cambridge University Press; p. 36.

27 Para uma análise desta temática leia‑se Bernard Lewis; (2001); A Linguagem Política do Islão; Lisboa, Edições Colibri; capítulo quarto (Guerra e Paz), pp. 103‑127. Para uma leitura sobre a dimensão carismática e o apelo que fazem ao martírio os líderes fundamentalistas islâmicos leia‑se a obra de R. Scott Appleby, (Ed); (1997); Spokesmen for the Despised: Fundamentalist Leaders of the Middle East; Chicago, Chicago University Press.
28
28 Basta reparar nas guerras travadas no século dezanove contra o império britânico e nas experiências das guerras israelo‑árabes, na guerra do Golfo de 1991 e na recente guerra do Iraque.
29
29 Para uma leitura do modus operandi tribal das guerrilhas afegãs leia‑se Olivier Roy; (1994); The Failure of Political Islam; Cambridge, Harvard University Press; pp. 147‑167.
30
30 Friedrich Nietzche; (1995); Untimely Meditations (traduzido por R. J. Hollingdale); Cambridge, Cambridge University Press; p. 148. Agradeço a António Almeida Pires a chamada de atenção para a observação feita por Nietzche.
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31 Hrair Dekmejian; (1995); Op. Cit.; p. 45.
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32 Nesta perspectiva pode‑se questionar se ao transferirmos o processo de decisão para os computadores não estaremos a afastarmo‑nos das consequências das nossas acções, o que nos pode empobrecer existencialmente. Questão pertinente de António Almeida Pires.
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33 Ainda que possa parecer despropositado este alarmismo, alguns filmes por enquanto de ficção científica podem ser particularmente ilustrativos destes perigos. Dark Star (de John Carpenter), 2001 Odisseia no Espaço (de Stanley Kubrick), Terminator (de James Cameron), Matrix (dos irmãos Wachowvski), Relatório Minoritário (de Stephen Spielberg).
34
34 Ilustrativamente, os militares americanos envolvidos na operação de captura dos dois adjuntos de Aideed na Somália descrevem todo o cenário de combate como se fosse algo de virtual, tendo de se auto‑convencer que a morte e o sangue em seu redor eram verdadeiros. Mark Bowden; (1995); Op. Cit.; pp. 345‑346.
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35 Don DeLillo; (1982); “Human Moments in World War Three”; Esquire (Julho); p. 122.
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36 Não se deduza desta minha afirmação um saudosismo ou um discurso anti‑modernista característico de “um velho do Restelo”.
37
37 Citado em Thomas Arnold; (2001); Op. Cit.; p. 39.
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38 Para uma análise psicológica sobre a noção de excesso de confiança que a superioridade tecnológica pode exercer sobre a decisão dos líderes políticos leia‑se a recente obra de Dominic D. P. Johnson; (2004); Overconfidence and War: The Havoc and Glory of Positive Illusions; Harvard, Harvard University Press, especialmente pp. 18‑26 e 35‑49.
39
39 Ralph Peters; (1999); Op. Cit.; p. 90.
40
40 Colin S. Gray; (2000); Modern Strategy; Oxford, Oxford University Press; p. 279.
41
65 Samuel Huntington, (1996); The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order; New York, Simon & Schuster.

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