segunda-feira, 15 de setembro de 2008

André Beaufre, Introdução a Estratégia

Capítulo 1

Finalidade da estratégia


Por outro lado, uma vez que vamos abordar o exame da finalidade da estratégia, ver-se-á mais claramente o interesse dessa definição.

Pode-se admitir que a finalidade da estratégia é atingir os objetivos fixados pela política, utilizando da melhor maneira os meios de que se dispõe. Ora, tais objetivos podem ser ofensivos (conquista, impor a aceitação de tais e tais condições onerosas), defensivos (proteção do território ou de tais e tais interesses), ou mesmo visarem simplesmente ao status quo político. Vê-se, desde já, que fórmulas como a atribuída a Clausewitz, de "a decisão pela batalha vitoriosa", por exemplo, não se podem aplicar a todos esses objetivos. Pelo contrário, a única lei geral englobando-os todos é a que, afastando qualquer noção de meio pelo qual a decisão seria obtida, não considera mais que a essência mesmo da decisão procurada. Essa decisão é a aceitação pelo adversário das condições que se lhe quer impor. Em tal dialética de vontades, a decisão é um acontecimento de ordem psicológica que se quer produzir no adversário": convencê-lo de que engajar-se ou prosseguir na luta é inútil.

Naturalmente, tal resultado poderia ser atingido pela vitória militar, mas esta muitas vezes não é indispensável; frequentemente, é mesmo irrealizável (caso dos felagas, Combatente argelino ou tunisiano nas guerras de independência contra a França nas décadas de 1950-60., por exemplo), enquanto que outros meios (viu-se bem nesse caso) podem ser eficazes. Recolocando o problema em seu verdadeiro terreno, que é o da psicologia do adversário, estamos em condições de apreciar corretamente os fatores decisivos. Assim, de um só golpe, encontramo-nos em um sistema de pensamento que engloba tanto a vitória militar como a estratégia da dissuasão nuclear, que se diz nova.

Lenin, analisando Clausewitz, havia proporcionado uma definição, bastante citada, que reconhece plenamente o caráter psicológico da decisão: "retardar as operações, até que a desintegração moral do inimigo torne ao mesmo tempo possível e fácil desfechar o golpe decisivo". Mas ele pensava como revolucionário e somente via a ação política atuando como uma espécie de preparação de artilharia de caráter moral. Era o inverso da concepção romântica e militar de Clausewitz, na qual o moral inimigo era quebrado por meio de uma vitória militar. A fórmula geral, também, parece-me ser a seguinte: obter a decisão, criando e explorando uma situação que leve a uma desintegração moral do adversáno, suficiente para fazê-lo aceitaras condições que se lhe quer impor.

É bem a ideia geral da dialética das vontades.

Meios da estratégia

O estudo dos meios da estratégia permite ainda melhor colocar em evidência a forma de raciocínio que lhe é própria.

Para atingir a decisão, a estratégia vai dispor de uma gama de meios materiais e morais, indo do bombardeio nuclear à propaganda, ou ao tratado de comércio. A arte consistirá em escolher entre os meios disponíveis, e em combinar sua ação, para fazê-los concorrer para um mesmo resultado psicológico, suficientemente eficaz puta produzir o efeito moral decisivo.

A escolha dos meios vai depender de uma confrontação entre as vulnerabilidades do adversário e as nossas possibilidades. Para fazer isto, é preciso analisar o efeito moral decisivo. Quem se quer convencer? Em última análise, é o Governo adverso que se quer convencer; mas, segundo o caso, será mais fácil agir diretamente sobre os dirigentes (Chamberlain em Bad Godsberg ou em Munique), escolhendo os argumentos aos quais eles serão sensíveis; ou, ao contrário, agir indiretamente sobre tal ou tal parte da opinião que tem alavancagem sobre o Governo, ou sobre um Governo aliado que goze de forte influência, ou sobre a ONU, por exemplo. Se o que está em jogo é pouco, tais pressões podem bastar. Se o que está em jogo é mais importante, ações de força podem ser necessárias.

Ainda assim a escolha dos meios deve ser perfeitamente adaptada às possibilidades amigas e às vulnerabilidades adversas: a vitória militar clássica, por exemplo, pode estar fora de alcance, ou ser demasiado perigosa. Neste caso, escolher-se-ia um levante re¬volucionário, destinado a levar a uma intervenção internacional, (como nos sudetos, antes de Munique), um levante revolucionário capaz de mudar o Governo (como em Praga, em 1950), uma pressão económica apoiada (como nas sanções económicas contra a Itália, em 1935), ou uma longa campanha de guerrilhas, combinada com uma ação internacional (como no Vietmine e nos felagas)? Quais serão as ações possíveis, as mais suscetíveis de influenciar decisivamente a psicologia dos dirigentes adversos? Se, enfim, uma ação militar dever ser empreendida, qual será seu objetivo? Será neces¬sário "destruir" as Forças Armadas adversas, seguindo a fórmula clau-sewitziana? Será isso possível? E, se não for, bastará um êxito local (campanha da Criméia, em 1854); e qual? Que categoria de Forças Armadas ou que região geográfica passa por ser decisiva, sob o ponto de vista do adversário (a Marinha e a Aviação, na Inglaterra, o Exército, na França etc)? Será indispensável, ou inútil, tomar a capi¬tal? Bastará ameaçar destrui-la? etc. Pode-se, assim, levar a análi¬se cada vez mais longe, até que se tenham encontrado os meios ao nosso alcance, capazes de levar à decisão buscada.

Elaboração do plano estratégico

Vai-se, então, poder realizar a elaboração do plano estratégico. Trata-se de uma dialética. Em consequência, é preciso preverás possíveis reações adversas, para cada uma das ações que se tem em vista; e assegurar-se a possibilidade de fazer face a cada uma delas. Essas reações podem ser internacionais ou nacionais, morais, polí¬ticas, económicas ou militares. Ações sucessivas e possibilidades de parada devem ser montadas num sistema visando a conservar o poder de desenvolver seu plano, a despeito da oposição adversa. Se o plano for bem feito, nele não deverá mais haver áleas. A mano¬bra estratégica, visando a conservar a liberdade de ação, deve ser "contra-aleatória". Naturalmente, ela deve ter em vista, claramente toda a sequência de acontecimentos que levam à decisão; o que, diga-se de passagem, não foi o caso do nosso lado, nem em 1870, nem em 1939, nem na Indochina, nem na Argélia. Acrescentemos, ainda, que o esquema da dialética dos dois adversários complica-se com a existência do contexto internacional. O peso dos aliados e mesmo dos neutros pode mostrar-se decisivo (como em Suez). Por tê-lo mal compreendido, a Alemanha perdeu duas guerras, atraindo a hostilidade da Grã-Bretanha (invasão da Bélgica) e dos Estados Unidos (guerra submarina). A avaliação correta da liberdade de ação rwultante da conjuntura internacional constitui, assim, elemento, capital da estratégia, sobretudo desde que o poder atómico reforçou, de forma extraordinária, a interdependência das nações.

Modelos estratégicos

Assim sendo, de acordo corn os meios relativos dos dois ad¬versários, e segundo a importância do que está em jogo, o plano estratégico se ordenará segundo diversos modelos, dos quais se irá examinar os mais característicos.

1. Caso se disponha de meios muito poderosos (ou se a ação que se tem em vista pode colocar em jogo fortes meios de nações aliadas), e se o objetivo é modesto, a simples ameaça de emprego desses meios pode levar o adversário a aceitar as condições que se lhe quer impor; e, ainda mais facilmente, a renunciar a pretensões de modificar o status quo estabelecido. Este modelo, de ameaça direta, é o que conhece atualmente grande voga, graças à existência da arma atómica, e que serve de base para o imponente edifício da estratégia de dissuasão.

2. Se, ao contrário, o objetivo permanecendo modesto, não se dispõe de meios suficientes para constituir uma ameaça decisiva, procurar-se-á a decisão por meio de ações mais ou menos insidiosas, de caráter político, diplomático ou económico. Este modelo de pressão indiretafoi largamente empregado nas estratégias hitle-riana e soviética, menos devido à fraqueza de seus meios de coerção, que em virtude da dissuasão decorrente da ameaça direta das forças adversas. É uma estratégia que corresponde aos casos em que a margem de liberdade de ação da força é estreita.

3. Se, estreita a margem de liberdade de ação e limitados os meios, o objetivo é importante, procurar-se-á a decisão através de uma série de ações sucessivas, combinando, segundo a necessida¬de, a ameaça direta e a pressão indireta com ações em forças limitadas. Este modelo, de ações sucessivas, foi ilustrado por Hitler, de 1935 a 1939, mas somente deu resultado enquanto o objetivo pare¬ceu de interesse menor. Ao contrário, quando o "mordiscar" põe em jogo objetivos vitais, o modelo desagua, necessariamente, num gran¬de conflito. Com as particularidades decorrentes de sua situação insular, a Grã-Bretanha, geralmente, usou esta estratégia de aproxi¬mação indireta, que Liddell Hart reformulou em nossos dias, de for¬ma muito explícita. Ela adapta-se, em particular, ao caso de nações defensivamente fortes (ou bem protegidas peia Natureza), desejosas de obter progressivamente grandes resultados, engajando ofensivamente apenas meios reduzidos. As guerras europeias do século XVIII têm mais comumente o caráter de aproximação indireta por meio de ações sucessivas, porque os meios empregados eram rela¬tivamente muito limitados.

4. Se a margem de liberdade de ação é grande, mas os meios disponíveis excessivamente fracos para obter uma decisão militar, pode-se recorrer a uma estratégia de conflito de longa duração, visando a promover a usura moral, a lassidão do adversário. Para poder durar, os meios empregados serão muito rústicos, mas a técnica de emprego (geralmente uma guerra total apoiada sobre uma guerrilha generalizada) obrigará o adversário a um esforço bem mais considerável do que ele poderá suportar indefinidamente. Este modelo de luta total prolongada de fraca militar foi geralmente empregado com sucesso nas guerras de descolonização. Seu teórico principal é Mao-Tsé-tung. Observemos que esta estratégia, que exige considerável esforço moral de parte de quem toma a iniciativa, pressupõe forte elemento passional e muito boa coesão da alma nacional. Assim, ela corresponde o mais com-pletamente possível às guerras de liberação. Mas ela somente tem chances de sucesso se o que está em jogo entre as partes é bem desigual (caso das guerras de descolonização), ou bem ela se beneficia de intervenções armadas (caso das guerras de liberação, na Europa, entre 1944-45, e na Espanha, em 1813-14) às quais elas servem de reforço.

5. Se os meios militares de que se dispõe são bastante poderosos, procurar-se-á a decisão pela vitória militar, em conflito violento e, se possível, curto. A destruição das forças adversas na batalha pode ser suficiente, sobretudo se o que está em jogo não é demasiado vital para o adversário. Caso contrário, a ocupação de todo ou de parte do território deverá materializar a derrota aos olhos da opinião pública, para fazer-lhe admitir as condições impostas. Na¬turalmente, a capitulação moral do vencido poderá ser grandemente facilitada, na hipótese de se dispor de quintas-colunas simpatizantes, como foi o caso nas vitórias da Revolução Francesa e de Napoleão. Essas quintas-colunas poderão mesmo desempenhar papel importante para ajudar as operações militares. Tal modelo de conflito violento visando à vitória militar corresponde à estratégia clássica do tipo napoleônico. Seu teórico principal, frequentemen¬te traído por seus exegetas, demasiadamente impregnados de uma espécie de romantismo wagneriano, é Clausewitz. Ela dominou a estratégia europeia do século XIX e da primeira parte do século XX. Considerada, erroneamente, como a única estratégia ortodoxa, engendrou as duas grandes guerras mundiais, de 1914-18 e de 1939-45, que, todas duas, colocaram em evidência os limites do conceito clausewitziano-napoleônico: a decisão não pode ser conseguida pela operação, sob certos aspectos cirúrgica, da vitória militar, a menos que as possibilidades militares do momento permitam obter, rapi¬damente, uma vitória militar completa. Ora, esta condição - ver-se-á mais adiante, quando se tratar da estratégia operacional - não existe, a não ser em certos momentos da evolução da tática e das operações. No intervalo entre esses períodos favoráveis, a estratégia clausewitziana não consegue mais que opor, em gigantescos conflitos militares, adversários que se equilibram (estabilização do fim de 1914, vitória continental alemã de 1940, que não pode transpor a Mancha e se atola em uma impossível campanha da Rússia). Nesse caso, a decisão somente ocorre após uma fase de usura recíproca, prolongada e desmesurada em relação ao que está em jogo, após a qual, vencedor e vencido saem do conflito inteiramente esgotados. Além disso, é interessante assinalar que o esquema já fora aplicado a Napoleão, por causa de sua impotência para resolver os problemas inglês e russo. Mas Clausewitz e seus alunos haviam sido obnubilados pelas vitórias do Imperador, a ponto de lhe desconhecerem os limites. Esse erro intelectual, provavelmente, custou à Europa sua preeminência no mundo.

Nenhum comentário: