FRANCISCO PROENÇA GARCIA
Professor da Academia Militar
Este texto corresponde à resposta a um desafio lançado por uma boa amiga para participar no colóquio “Discursos e práticas alquímicas”. Com ele pretendemos contribuir para desmistificar a actividade de Intelligence, que subsiste no imaginário português ainda com alguns fantasmas e incorrectas interpretações que têm tornado os Serviços de Informações impopulares. A nível académico também tem faltado o debate e a reflexão sobre estas temáticas (1).
Neste texto, ao falarmos de Informações, referimo-nos a Intelligence, que não se pode confundir com informações policiais, criminais ou mesmo políticas. Inicialmente procuramos sumariamente justificar por que motivos são indispensáveis as actividades de Intelligence para qualquer unidade política, organização ou empresa, bem como a razão pela qual carecem de um controlo seguro; para depois detalharmos um pouco as fontes desta actividade, nomeadamente o papel do “agente duplo”.
As Informações desempenharam um papel de relevo na arte de governar ao longo de toda a História. Para Maquiavel, o Príncipe necessitava de estar sempre informado, devendo pensar nas desordens futuras e não apenas nas presentes, pelo que devia servir-se de toda a habilidade para as evitar, pois, prevendo-as à distância, com mais facilidade as poderia remediar (2).
Vivemos hoje num período em que se assiste à construção de uma nova ordem internacional, caracterizada por um mundo interdependente, praticamente globalizado, da era da informação; onde os teatros de operações estão mundializados; onde as soberanias são múltiplas e partilhadas; onde proliferam os riscos e perigos, uns novos, outros velhos, mas que apenas subiram na hierarquia das actuais preocupações das unidades políticas com a segurança; onde também cresce gradualmente o poder de outros actores não estatais. Num mundo com estas características cremos que “(...) nenhum país, por mais poderoso que seja, pode conceber uma política externa, de defesa, económica ou qualquer outra sem dispor das informações que proporcionam o conhecimento essencial, sobre o qual tais políticas assentam (...)” (3). Esta frase de um “velho Senhor” da Intelligence portuguesa, espelha bem a necessidade de as unidades políticas disporem de serviços especializados que prestem apoio isento e esclarecido aos diversos órgãos de soberania.
Os serviços de Intelligence são imprescindíveis para uma unidade política, organização ou empresa (4), numa perspectiva defensiva e ofensiva. A primeira procurando identificar vulnerabilidades e ameaças conduzidas contra interesses (permanentes ou conjunturais), a segunda visando projectar os interesses, influenciar, determinar e condicionar o quadro geopolítico, geoeconómico e mesmo geocultural de determinados espaços e áreas consideradas como vitais (5).
Ao nível das unidades políticas, as actividades de Intelligence devem apoiar, entre outras, a missão das Forças Armadas (6), em tempo de paz e de guerra, podem e devem apoiar a actividade diplomática e a actuação das forças de segurança. No mundo consumista e competitivo de hoje, também as organizações e as empresas necessitam de “gabinetes” especializados em informações estratégicas económicas, actividade designada por vezes por competitive intelligence.
O enquadramento dos serviços de Intelligence nas democracias estabilizadas ocidentais, onde em princípio impera a transparência e o reconhecimento do direito das liberdades e garantias dos cidadãos, pressupõe que esta actividade seja fiscalizada e controlada política e judicialmente, tendo em vista, no mínimo, a responsabilização democrática dos mesmos serviços (7). Contribuem também em larga medida para o controlo dos serviços, os órgãos de comunicação social. Ao nível da empresa, as regras são normalmente as dos preços e mercados, da concorrência, sendo o controlo feito pelos mercados de capitais, pelos media e pela opinião pública, normalmente mal informada e facilmente instrumentalizada.
O facto de, ao nível das unidades políticas, existir um controlo que contribui para a transparência das actividades desenvolvidas pelos serviços de Intelligence, não significa que, em termos funcionais, estes não disponham de formas de actuação próprias, em regra, através de práticas e técnicas “pouco ortodoxas” para o cidadão comum, com grande autonomia, ao bom estilo da série televisiva “Vingadora” ou do famoso James Bond. Contudo, sempre com o garante do controlo sobre as actividades operacionais “cobertas”, para que estas não ultrapassem as “franjas da legalidade”. As operações “cobertas” ou de espionagem das empresas são dificilmente controladas, e cremos que dependem apenas da ética empresarial; quando detectadas, devem ser punidas judicialmente.
Para serem capazes de desempenhar a sua missão, os serviços ou órgãos de Intelligence carecem de fontes, que, hoje, apesar de vivermos numa sociedade de terceira vaga, na expressão de Alvin e Heidi Tofler, permanecem com a mesma tipologia: fontes abertas, fontes cobertas e serviços congéneres (8).
Na comunidade de intelligence existe uma velha premissa pela qual aproximadamente 90% das informações são obtidas por via aberta e os 10% por via coberta, procurando assim salientar-se a importância dos chamados operacionais, os homens que andam no terreno, vulgo espiões, relativamente aos analistas, os homens de gabinete. Hoje, esta destrinça tende a esbater-se com o emergir do designado analista operacional, que também efectua a gestão de fontes.
Seja qual for o tipo de fontes, o grande problema que se coloca é a gestão dessas mesmas fontes, pois, a “avalanche” de dados obtidos - a matéria-prima fundamental - por quaisquer meios e processos HUMINT (Human Intelligence), IMINT (Imagery Intelligence), COMINT (Communications Intelligence), dificulta o trabalho de selecção criteriosa e sobretudo atempada, para uma análise consistente desses mesmos dados.
A HUMINT, depois do 11 de Setembro, assume vital importância, e aqui acompanhamos Sun Tzu, para quem “(...) a presciência ou previsão não podem ser deduzidas dos espíritos, nem dos deuses, nem por analogia com acontecimentos passados, nem por cálculos. Ela deve ser obtida por homens que conhecem a situação do inimigo (…)" (9). Independentemente da quantidade e sofisticação dos meios, o futuro depende sobretudo da capacidade de produção de intelligence através da utilização de agentes infltrados ou de preferência de agentes duplos, que forneçam informação humana.
Para não fugirmos ao tema deste pequeno texto, vamos cingir-nos apenas às fontes cobertas, cuja principal caracterísitica é a dissimulação. Dentro destas fontes podemos considerar o agente duplo, que pode ser entendido como um elemento de um serviço de intelligence de uma unidade política, organização ou empresa, que, por “traição” também serve uma outra unidade política, organização ou empresa. Estas situações ocorrem normalmente por falta de observação e controlo, assim permanecendo até uma eventual detecção. Os fundamentos dessa “traição”, entre outros, podem ser ideológicos ou financeiros. Os agentes duplos e a sua dupla personalidade levantam um problema para aqueles que dirigem serviços ou órgãos de Intelligence: a quem entrega o agente duplo a sua fidelidade?, a quem serve efectivamente? e até quando?.
Devemos também destrinçar entre “agente infiltrado” e “agente duplo”, ambos no entanto considerados como uma actividade de espionagem. O agente infiltrado é colocado propositada e predefinidamente no interior de uma organização adversária, por um serviço ou órgão de Intelligence, com o intuito de obter informações.
Os agentes infiltrados, secretos e informadores, já referidos por Sun Tzu (10), conduzem um conjunto de actividades necessárias para o conhecimento do adversário, como alterar informações, corromper ou subverter oficiais ou mesmo "(…) exacerbar a discórdia interna e fomentar o Quinta Colunismo (…)" (11). Estes agentes podem ser empregues em simultâneo, mas não podem ser suspeitos, não se podem desmascarar facilmente (12).
No confronto Poder português/FRELIMO, as partes utilizaram profusamente esta figura. A PIDE infiltrava elementos na organização subversiva, subornando/chantageando ou forçando quadros daquela Frente. Por outro lado, a FRELIMO, para além de utilizar mulheres na recolha de informações (13), colocava os seus agentes em locais chave da Administração e do Comando-Chefe, como era o caso do irmão de Joaquim Chissano que pertencia ao Gabinete do General Kaúlza de Arriaga.
Ao longo da História foram inúmeros os agentes duplos que ficaram famosos. No período da guerra fria estas situações proliferaram (14). Lembramos, por exemplo, Kim Philby, nome de código Stanley ou Agent Tom, cuja vida está na base do livro de Graham Greene, The human factor.
Kim Philby, nascido na Índia mas filho de ingleses, converte-se ao comunismo quando estudante em Cambridge no ano de 1929. Foi recrutado pelo KGB (Komit Gosudarstvennoy Upravleni) soviético em 1934, em Viena, onde se encontrava de férias, altura em que recebe instruções para se “infiltrar” no aparelho de Estado britânico, de preferência na área do Intelligence. Em Londres consegue fazer-se membro de uma organização de extrema direita, a Anglo-German Fellowship, e em 1936 acompanha a guerra civil espanhola ao lado de Franco, como correspondente do London Times. Em 1939 o MI6 (Secret Intelligence Service), sem uma verificação cautelosa sobre o seu passado, recruta-o para o Departamento D (sabotagem e propaganda). Em 1941 é transferido para analista na área da contra-espionagem em países estrangeiros, e em 1944 é nomeado para a Secção IX (combate à subversão soviética e operações de Intelligence), aquilo que ironicamente pode ser considerado como o homem certo no local certo. Em 1949 é colocado como chefe de um dos postos mais importantes, Washington D.C., o que lhe permitiu não só aceder a documentação do MI6 mas também da CIA (Central Intelligence Agency).
Depois de quase ter sido desmascarado pelo longo braço oculto da CIA num episódio complexo no ano de 1951, Philby é chamado de novo para Londres, sendo-lhe vedado o acesso a material considerado com interesse para o KGB, e sendo mantido sob vigilância. A partir de 1961 a situação complica-se estreitando-se o “cerco”, e em 1963, de Beirute, onde trabalhava com a cobertura de correspondente de um jornal, Philby foge para Moscovo, onde o esperava um asilo político doirado, mas, por falta da velha questão da efectiva confiança, sem aproveitamento no Intelligence local. No ano de 1980, Yuri Andropov convida-o para consultor das operações na Grã-Bretanha. Morre em 1988, tendo merecido honras militares correspondentes ao seu posto, General.
Um outro agente duplo que ficou famoso foi Oleg Penkovsky, nome de código Chalk, Yoga, entre outros. Este Coronel do GRU (Glavnoye Razvedyvatelnoye Upravleni) soviético, numa tarde de Agosto de 1960, sobre uma ponte em Moscovo, aproxima-se de um casal de turistas norte-americanos e, arriscando a vida, entrega-lhes em mão um envelope para entregarem na CIA. Com esta atitude Penkovsky colocava-se à disposição da América para espiar a seu favor.
As dúvidas iniciais desta estranha oferta rapidamente se dissiparam quando o Coronel começa a fornecer um considerável volume de documentação de informação classificada de Muito Secreta, sobretudo sobre tecnologia militar, bem como a identificação de centenas de agentes do GRU espalhados pelo mundo. Penkovsky, que pretendia apenas ser um “soldado para a paz” acabou por ser apanhado numa armadilha montada pela KGB em 1963 e, como era tradição, queimado vivo perante o olhar impotente dos seus ex-colegas.
Hoje, no pós guerra fria, a espionagem é sobretudo industrial e processada entre japoneses e norte-americanos, chineses e japoneses, chineses e norte-americanos, etc., visando sempre a obtenção de uma mais valia para o mercado e a redução de investimentos em I&D e custos na aquisição de patentes.
As actividades de espionagem revestindo as mais diversas formas e utilizando um grande leque de meios, sempre existiram e existirão, pois não esqueçamos que esta é considerada a segunda mais velha profissão do mundo.
NOTAS
(1) Em Portugal merece referência, como um dos poucos destaques, o trabalho desenvolvido pelo General Pedro Cardoso, do qual apenas uma pequena parte foi publicada – vide CARDOSO, Pedro – "As informações em Portugal, Nação e Defesa", Instituto de Defesa Nacional, reedição de 1993, e mais recentemente destacamos os contributos de ROGEIRO, Nuno – "Guerra em Paz: A Defesa Nacional na nova desordem mundial". Lisboa, Hugin Editores, 2002, AAVV, Coordenação de MOREIRA, Adriano e GARCIA, Proença, "Informações e Segurança - Estudos em Homenagem do General Pedro Cardoso". Lisboa, Prefácio, 2003 (no Prelo), e alguns contributos do General Chito Rodrigues, do Dr. Rui Pereira, do Dr. José Magalhães e do Dr. Pedro Esteves, dispersos por algumas publicações periódicas.
(2) MAQUIAVEL, Nicolau, “O Príncipe”. Lisboa: Publicações Europa América, 1977, pp. 21-22.
(3) CARDOSO, Pedro, ob. cit., pp. 227 - 228.
(4) A este propósito devemos consultar o magnífico texto Informação, Informações & Estratégia Económica e Empresarial do Professor Ernâni Rodrigues Lopes, in Coordenação de MOREIRA, Adriano e GARCIA, Proença, "Informações e Segurança - Estudos em Homenagem do General Pedro Cardoso". Lisboa, Prefácio, 2003 (no prelo).
(5) ROMANA, Heitor, O novo modelo do terrorismo islâmico: desafios à análise em informações estratégicas, in Coordenação de MOREIRA, Adriano e GARCIA, Proença, "Informações e Segurança - Estudos em Homenagem do General Pedro Cardoso". Lisboa, Prefácio, 2003 (no prelo).
(6) Clausewitz refere também a importância das informações ao considerar o termo informações como o "(…) conjunto de conhecimentos relativos ao inimigo e ao seu país e, por consequência, a base sobre o qual se fundamentam as nossas próprias ideias e os nossos actos (…)". In, Clausewitz, Carl Von, “Da Guerra”. Lisboa: Ed. Perspectivas e Realidades, 1976, p. 127.
(7) Sobre este assnto podemos encontrar detalhes interessantes em CARDOSO, Pedro, ob.cit. pp.143 - 151, e em ESTEVES, Pedro, Estado e informações: uma perspectiva sistémica, in Coordenação de MOREIRA, Adriano e GARCIA, Proença "Informações e Segurança - Estudos em Homenagem do General Pedro Cardoso". Lisboa, Prefácio, 2003 (no prelo).
(8) Podemos consultar GRAÇA, Borges, Metodologia da análise nas informações estratégicas, in Coordenação de MOREIRA, Adriano e GARCIA, Proença "Informações e Segurança - Estudos em Homenagem do General Pedro Cardoso". Lisboa, Prefácio, 2003 (no prelo), ou mais detalhadamente D'AMUALE, Geoffroy e FAURE, Jean - Pierre, "Guide de L´espionage et du contre-espionage. Histoire et techniques". 1998.
(9) TZU, Sun, "A Arte da Guerra", Lisboa, Ed. Futura, 1974. p. 235.
(10) Para Sun Tzu, "(…) somente um soberano iluminado e um general valoroso é que são capazes de empregar as pessoas mais inteligentes como agentes e estarem certos de alcançar grandes resultados (…)"; Sun Tzu considerava cinco espécies de agentes secretos: o nativo, o interior, o duplo, o queimável e o vivente. "A Arte da Guerra", p. 120 e seguintes.
(11) GRIFFITH, Samuel, na Introdução de "A Arte da Guerra", de Sun Tzu, ob. cit., p. 21.
(12) MUCHIELLI, Roger, “La Subversion”. Paris: CLC, 1976, p. 78.
(13) ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO, Boletim de Informação, N.º 16, Abril de 1966, Reservado, p. 12.
(14) Podemos verificar inúmeros exemplos na obra que utilizamos como fonte para este texto da autoria de VOLKMAN, Ernest, "Spies - The secret agents who changed the course of History". London, 1994.
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