-FIM DA POLÊMICA SECULAR –
Desde 1904, o milionário Ernest Archedeacon, cognominado o “Mecenas da Aviação”, oferecia, em Paris, 3.000 francos para quem conseguisse voar em avião uma distância de 25 metros com um ângulo de queda máxima de 250. O ganhador receberia, além do dinheiro, a Taça da Aviação.
Já eram passados dois anos e ninguém ainda conquistara o prêmio.
Em 13 de setembro de 1906, o aeronauta brasileiro Santos Dumont concorreu pela primeira vez á taça da Aviação com o seu avião 14-bis: o aparelho correu no solo 200 metros, quando as três rodas perderam o contato com o chão. O avião subiu a 70 centímetros e percorreu 8 metros no ar, a 35 quilômetros por hora. Uma ata do feito foi lavrada.
A experiência resultou apenas num salto. O 14-bis estava provido nesse dia de um motor de 24 cavalos.
Em 23 de outubro de 1906, Santos Dumont concorreu novamente com o 14-bis à Taça da Aviação, agora provido de um motor de 50 cavalos, e logo na primeira tentativa, percorreu cerca de 60 metros no ar, a uma altura de 3 metros: um pequeno vôo para o homem mas um grande vôo para a humanidade!
No banquete em que o Aeroclube homenageou Santos Dumont pela façanha, Ernest Archdeacon pronunciou as seguintes palavras:
“Se algum dia eu pudesse pecar por inveja, pecaria hoje invejando meu amigo Santos Dumont, que conseguiu conquistar umas das glórias mais belas que um homem pode ambicionar neste mundo. Acaba de realizar, não em segredo, nem diante de testemunhas hipotéticas e complacentes, mas à plena luz do sol e perante uma multidão, um soberbo vôo de 60 metros, a três metros de distância do solo, o que constitui um fato decisivo na história da aviação.”
Nessa mesma época, o Aeroclube da França também oferecia um prêmio aeronáutico: 1.500 francos para um vôo mecânico de 100 metros, com desnível máximo de 100.
Para esse prêmio, Santos Dumont iniciou os testes pela manhã do dia 12 de novembro de 1906, às 10 horas. Nesse dia ele havia surgido com o 14-bis exibindo uma novidade: os ailerãos, dispositivos móveis localizados na parte posterior da extremidade das asas do avião, destinados a controlar os movimentos de inclinação lateral do aparelho, como, por exemplo, nas curvas.
Santos Dumont fez quatro tentativas nesse dia, na última das quais percorreu no ar 220 metros em 21 segundos, a 6 metros de altura, a uma velocidade de 41 km/h. Com esse feito, ele arrebatou os 1.500 francos do prêmio oferecido pelo Aeroclube da França! Foi o primeiro vôo mecânico oficial da História da Aviação. A ata lavrada foi a seguinte:
“AEROCLUBE DA FRANÇA
Sociedade de encorajamento à locomoção aérea
Processo verbal
12 de novembro de 1906
Primeira tentativa – Partida às 10 horas da manhã. O aparelho se eleva antes da linha de partida e percorre em cinco segundos, a 40 centímetros do solo, uma quarentena de metros. O motor gira a 900 voltas.
Segunda tentativa. – Partida às 10h 25min. O aparelho percorre todo o campo de treinamento, executando dois vôos a pouca distância do solo, o primeiro de 40 metros, e o segundo de aproximadamente 60 metros. O percurso se encerra com uma tentativa de curva em pleno vôo, curva impedida pela proximidade das árvores, depois que um quarto de meia-volta à direita já havia sido efetuado. O eixo da roda de sustentação direita, ligeiramente torcido, foi consertado durante o almoço.
Terceira tentativa - Partida às 4h09min. Dois vôos: o primeiro de 50m; o segundo, cronometrado pelos senhores Surcouf e Besançon, de 82m e 60cm, em 7seg. 1/5, ou 11,47m/s ou, ainda, 41,92km/h. Tentativa de curva para a direita, contida pela barreira do Pólo, quando o aparelho já havia descrito praticamente uma meia-volta.
Nesta tentativa, Santos Dumont superou oficialmente o seu percurso de 23 de outubro, pelo qual já havia ganho a Taça de Aviação Archdeacon. Todos os trajetos foram executados no mesmo sentido. A partida se fazia na extremidade norte do campo de Bagatelle e a chegada na direção do Pólo.
O quarto ensaio foi feito no sentido inverso dos três anteriores. O aviador saiu contra o vento. A partida deu-se às 4h 45min, com o dia já terminando. O aparelho, favorecido pelo vento de proa e também por uma leve inclinação, impulsiona-se quase que imediatamente. Parte loucamente e surpreende os espectadores mais distantes que não se acomodaram a tempo.
Para evitar a multidão, Santos Dumont aumenta a incidência e ultrapassa seis metros de altura. Mas no mesmo instante a velocidade diminui. Será que o valente experimentador teve um instante de hesitação? O aparelho parecia menos equilibrado, certamente: ele esboça uma volta para a direita. Santos, sempre admirável por seu sangue-frio e por sua agilidade, corta a ignição e volta ao solo. Mas a asa direita toca o chão antes das rodas e sofre pequenas avarias. Felizmente Santos está ileso e é acolhido impetuosamente pelos assistentes entusiasmados em frenética ovação, enquanto Jacques Fauré carrega em triunfo sobre seus robustos ombros o herói desta admirável proeza.
O percurso aéreo, medido com exatidão, é de 220 metros em 21 segundos, isto é, 10,38 metros por segundo ou 37,358 quilômetros por hora.”
Em 1910, o Aeroclube de França mandou erigir, em Bagatelle, um marco de pedra, de uns dois metros de altura, com esta inscrição consagradora e indelével:
“AQUI
EM 12 DE NOVEMBRO DE 1906
SOB CONTROLE DO
aéroclubE dA franÇA
Santos Dumont
ESTABELECEU OS PRIMEIROS RECORDES
DE AVIAÇÃO DO MUNDO
durAÇÃO 21s 1/5 DISTÂNCIA 220m.”
Em 1913, outro monumento foi erguido a Santos Dumont, desta vez em Saint-Cloud, pelo Aeroclube da França. Inaugurado em 19 de outubro, (data da circunavegação da Torre Eiffel) com a presença do aeronauta, o monumento ostentava a seguinte inscrição:
“ESTE MONUMENTO
FOI ERIGIDO
PELO
AEROCLUBE DA FRANÇA
PARA COMEMORAR AS EXPERIÊNCIAS
de Santos Dumont
PIONEIRO DA LOCOMOÇÃO AÉREA”
Desde 1928, porém, os norte-americanos creditam os irmãos Wright como os primeiros a voar num avião, em 17 de dezembro de 1903 – três anos antes de Santos Dumont – mas os muitos documentos que mostram provam justamente o contrário.
Por exemplo: o telegrafista Alpheus Drinkwater [1875 – 1962] trabalhava numa estação próxima de onde os irmãos faziam suas experiências e de lá os observava. Em 17 de dezembro de 1903, ele estava em seu posto e assistiu ao que os Wright fizeram nesse dia. Quarenta e oito anos depois, o jornal The New York Times, em 17 de dezembro de 1951, publicou sua declaração sobre aquelas experiências: ele afirmou que em 17 de dezembro de 1903 os Wright apenas planaram e que seu primeiro vôo real só veio a ocorrer em 6 de maio de 1908.
Defender e cultuar Alberto Santos Dumont não significa, certamente, diminuir quem quer que seja. A glória de Santos Dumont não foi conquistada à custa de terceiros. Tudo quanto se fez, antes ou depois dele, permanece intacto.
FEITOS HISTÓRICOS, PORÉM, NÃO DEVEM E NÃO PODEM SER ALTERADOS, ESPECIALMENTE NO CAMPO DOS ESPORTES, ONDE A CRONOLOGIA POSSUI A MÁXIMA IMPORTÂNCIA.
Que dizia o próprio Santos Dumont quanto às reivindicações dos Wright? No seu livro de 1918 O que eu vi, o que nós veremos, ele assim se expressou:
“Eu não quero tirar em nada o mérito dos irmãos Wright, por quem tenho a maior admiração; mas é inegável que, só depois de nós, se apresentaram eles com um aparelho superior aos nossos, dizendo que era cópia de um que tinham construído antes dos nossos.
Logo depois dos irmãos Wright, aparece Levavassor com o aeroplano ‘Antoinette’, superior a tudo, quanto, então, existia; Levavassor havia já 20 anos que trabalhava em resolver o problema do vôo; poderia, pois, dizer que o seu aparelho era cópia de outro construído muitos anos antes. Mas não o fez.
O que diriam Édison, Graham Bell ou Marconi se, depois que apresentaram em público a lâmpada elétrica, o telefone e o telégrafo sem fios, um outro inventor se apresentasse com uma melhor lâmpada elétrica, telefone, ou aparelho de telegrafia sem fios dizendo que os havia construído antes deles?!
A quem a humanidade deve a navegação aérea pelo mais pesado que o ar? Às experiências dos irmãos Wright, feitas às escondidas (eles são os próprios a dizer que fizeram todo o possível para que não transpirasse nada dos resultados de suas experiências) e que estavam tão ignoradas no mundo, que vemos todos qualificarem os meus 250 metros de ‘minuto memorável na história da aviação’ ou é aos Farman, Bleriot e a mim que fizemos todas as nossas demonstrações diante de comissões científicas e em plena luz do sol?”
Posteriormente, em outro livro, chamado O homem mecânico – ainda inédito – Santos Dumont escreveu:
“Foi, posso dizê-lo hoje [escrevia por volta de 1929] uma prova um tanto dolorosa para mim assistir, após os meus trabalhos sobre dirigíveis e o mais pesado que o ar, a ingratidão daqueles que me cobriam de louros alguns anos antes.
Realizei minhas experiências em Paris, diante de seu povo e de sua imprensa, que as testemunharam. Recebi do Aeroclube de França, como pioneiro da aeronáutica, a homenagem do monumento de Saint Cloud e da pedra comemorativa de Bagatelle, homenagens consagradas oficialmente pelo Governo Francês com a fita da Legião de Honra, e sinto-me constrangido ao ter de falar de mim mesmo – o ‘eu’ é-me odioso – a fim de defender estes testemunhos e esta consagração que, por vezes, parecem inconsideradamente haver sido esquecidos.
Há, nisto, mais uma prova de minha gratidão que uma reivindicação. Esta última seria aliás inútil porque a história não se escreverá senão com o recuar do tempo e com os fatos e documentos. (...)
De 1901 a 1903, não se fala no mundo inteiro senão nos meus sucessos em dirigíveis.
Em 1906, meu nome é de novo elevado às nuvens, desta vez na qualidade de primeiro homem voador... É impossível falar aqui todos os jornais que falaram de mim nestes termos, mas o que é certo, é que todos, sem exceção, estavam acordes a este respeito. (...)
Alguns anos passam, e tudo é esquecido. (...)
Os partidários dos irmãos Wright pretendem que estes voaram na América do Norte de 1903 a 1905. Tais vôos teriam tido lugar perto de Dayton, num campo ao longo de cujo limite passava um bonde.
Não posso deixar de ficar profundamente espantado por este fato inexplicado, único, desconhecido: durante três anos e meio os Wright realizaram inúmeros vôos mecânicos e nenhum jornalista da tão perspicaz imprensa dos Estados Unidos se abalança para ir assisti-los, controlá-los, e aproveitar o assunto para a mais bela reportagem da época!
E de que época!
Estávamos em plena carreira de Gordon Bennet, este protótipo do jornalista americano, fundador da grande reportagem, que havia mandado um de seus homens, Livingstone, procurar Stanley no centro da África, então desconhecida e inexplorada.
Tudo o que era novo, ele encorajava. Recordai a taça Gordon Bennet para balões livres, e a dos automóveis.
Nas minhas oficinas se encontrava, quase dia e noite, um dos seus ‘repórteres’.
‘Estamos’ – dizia-me ele – ‘num período áureo da história do mundo. Interessam-se prodigiosamente pelos seus trabalhos.
E estes, quase quotidianamente eram relatados no jornal de Gordon Bennet.
Como imaginar então que, na mesma época, os irmãos Wright descrevem círculos no ar durante horas, sem que ninguém disso se ocupe?
Só em 1908 é que os Wright vieram à França e mostraram pela primeira vez a sua máquina. Haviam-na guardado em segredo, diziam eles, durante cinco anos, desde o seu primeiro vôo de 17 de dezembro de 1903.
Entretanto – e eu peço notar bem isto – se os dois americanos exibiram a sua máquina em fins de 1908, é porque haviam recebido uma oferta de 500 mil francos de um empresário francês, que lhes pedia em troca demonstrações públicas com o aparelho e cessão dos direitos de patente do mesmo para a França.
Ora, em 1904, na Exposição Universal de São Luís, isto é, na época em que os Wright diziam que a sua máquina voava havia um ano – e São Luís ficava a poucas centenas de milhas de Dayton – havia a ganhar um prêmio de 500 mil francos, do mesmo valor da oferta de 1908. E nesta ocasião, nenhum direito de patente a ceder! Mas estes 500 mil francos não interessaram aos dois irmãos. Preferiram esperar quatro anos e meio e viajar 10.000 quilômetros para virem disputar a oferta francesa, no momento em que eu próprio, os Farman, os Blériot e outros, voávamos já!”
Foi apenas em 1900 que os irmãos Wright, Orville e Wilbur, construíram seu primeiro planador, um biplano, com superfície alar de 55 metros quadrados. Segundo seus cálculos, baseados em tabelas de pressão elaboradas anteriormente por outros experimentadores, essa superfície deveria bastar para carregar um homem numa velocidade de vinte e oito a trinta e sete quilômetros por hora. Os ventos de Dayton, contudo, não eram bastante fortes para lhes proporcionar o resultado esperado, e eles resolveram escrever ao Serviço de Meteorologia dos Estados Unidos, em Washington, pedindo que os informasse sobre localidades onde houvesse bons ventos. Foi-lhes sugerido as praias de Kitty Hawk, na Carolina do Norte.
Em Kitty Hawk os Wright constataram que, embora os ventos fossem de fato intensos, não eram suficientes para fazer decolar seu planador do chão, o que os obrigou a testá-lo como uma pipa, apenas. A partir daí começaram a construir planadores maiores e melhores. Muitos dos aperfeiçoamentos introduzidos foram aplicações diretas de resultados obtidos com experiências realizadas num pequeno túnel aerodinâmico montado por eles próprios em 1902.
Em 1903 os irmãos construíram uma máquina aérea provida de motor, o Flyer, concluído em dezembro; possuía 12,3 metros de envergadura, 6,4 metros de comprimento, 2,8 metros de altura e massa de 274 quilogramas (com o piloto, a massa do conjunto se elevava para 340 quilogramas). O motor tinha 12 cavalos-vapor de potência e massa de 69 quilogramas.
Uma tentativa fracassada de vôo tripulado ocorreu no dia 14 de dezembro.
Três dias depois os Wright tentaram voar novamente com o Flyer; o resultado de suas experiências pode ser lido no telegrama enviado por eles ao pai: “Sucesso quatro vôos manhã quinta-feira todos iniciados no nível do chão contra vento 21 milhas somente com força motor velocidade média relação ar 31 milhas vôo mais longo 57 segundos informe imprensa local. Feliz Natal. Orevelle Wright”
No primeiro vôo a distância atingida teria sido de 100 pés (30 m); no segundo, de 175 pés (53 metros); no terceiro, de 200 pés (61 metros) e no quarto, de 852 pés (260 m).
Lê-se no telegrama que o avião adquiriu sustentação quando a velocidade em relação ao ar atingiu 31 milhas por horas (14 m/s ou 50 km/h), sendo que apenas 10 milhas por hora (4 m/s ou 16 km/h) eram resultantes da tração do motor; as outras 21 milhas por hora (10 m/s ou 34 km/h) eram conseqüência do vento reinante na ocasião.
Esses dados revelam que a sustentação se deveu muito mais à velocidade do vento de então (34 km/h) do que à tração do motor (16 km/h).
Um vôo mecânico é aquele no qual a sustentação é obtida por meio de um aparelho de propulsão (um motor). Um vôo planado é aquele no qual a sustentação se faz mediante a reação aerodinâmica do vento nas asas. Assim sendo, os vôos de 17 de dezembro de 1903 foram vôos planados, e não mecânicos, pois dependeram essencialmente do vento.
Por essa razão os Wright iam voar em Kitty Hawk, distante 880 quilômetros do seu lar, Dayton. Kitty Hawk é uma região rica em ventos, sem os quais o Flyer era incapaz de decolar. A máquina não era, portanto, um avião – pois avião independe de vento para decolar – e sim nada mais que um planador motorizado.
Em 1904, a fim de conseguirem mais progresso em menos tempo, os Wright decidiram passar a realizar suas experiências aeronáuticas em algum lugar próximo a seu lar, Dayton. Escolheram a Pradaria Huffman, distante apenas 8 milhas (13 km) de Dayton, por considerarem-na um campo adequado para vôos, e pediram permissão ao seu proprietário, o banqueiro Torrence Huffman, para usá-la como tal. Embora o banqueiro tenha ficado surpreso com a solicitação, não viu mal em deixar os irmãos utilizarem a pradaria improdutiva para seus ensaios, e lhes concedeu a autorização.
Permissão concedida, os Wright construíram um hangar na pradaria para abrigar seu segundo Flyer, terminado em maio de 1904.
O Flyer Wright II, como era conhecido, tinha uma asa modificada para alcançar maior velocidade. Sua curvatura era de 1,25m em vez de 1,23m e seu motor produzia de 15 a 16 cavalos - o resultado exato dependia de pequenas modificações que podiam ser feitas. O piloto do Flyer II ainda ficava em posição deitada e os controles da envergadura da asa do leme de direção ainda estavam ligados. Os irmãos concluíram que deveriam aumentar o comprimento da pista de lançamento de 60 para 160 pés [de 18 para 48 metros], pois as condições de vento na pradaria não eram tão favoráveis como as de Kitty Hawk.
Nas palavras de Orville Wright:
“Quando a máquina ficou pronta para ser experimentada pela primeira vez, todos os jornais de Dayton foram avisados e cerca de 12 representantes da imprensa estavam presentes. O único pedido que havíamos feito era que não fossem tiradas fotografias e que as reportagens não fossem sensacionalistas, para que multidões não fossem atraídas para os nossos campos experimentais. Havia cerca de 50 pessoas reunidas no local. Quando todos os preparativos estavam prontos, o vento que soprava era de apenas três ou quatro milhas [por hora] - insuficiente para dar partida em uma pista tão curta. No entanto, como muitos haviam vindo de longe para ver a máquina em ação, fizemos uma tentativa. Além disso, tivemos uma outra dificuldade, o motor se recusava a funcionar adequadamente. Após percorrer toda a extensão da pista, a máquina saiu dela sem levantar vôo. No dia seguinte [dia 26 maio] muitos jornalistas voltaram, mas novamente ficaram desapontados. O motor não funcionava bem e depois de planar 60 pés [18 metros], a máquina voltou ao solo. Adiamos a realização de outros testes até que o motor estivesse em melhores condições de funcionamento. Nesta época os repórteres tinham perdido, sem dúvida, a confiança na máquina, apesar de suas reportagens disfarçarem isso gentilmente. Mais tarde quando ouviram dizer que estávamos fazendo vôos com duração de alguns minutos, sabendo que haviam sido realizados vôos mais longos com dirigíveis e sem conhecer qualquer diferença essencial entre dirigíveis e máquinas de voar, eles ficaram pouco interessados...”
Nessas palavras, Orville admitiu que, apesar da máquina estar provida de motor de 16 cavalos-vapor, tudo o que se obteve em 16 de maio foi um planeio de 18 metros; sua explicação para o fracasso é muito interessante: não havia bastante vento para um vôo naquele dia.
Em Kitty Hawk, na ventania de 17 de dezembro de 1903, o Flyer 1 precisou mover-se a apenas 16 km/h para decolar. Na pradaria de Ohio, porém, ventos fortes não eram freqüentes. Lá, depois do fiasco perante a imprensa, os Wright tentaram voar mais de quarenta vezes, nunca o conseguindo em tempo calmo. O Flyer 2 só decolava quando existia vento contrário suficientemente forte para ajudar. Isso está reconhecido numa carta de Wilbur enviada a Chanute nesse período:
“Dayton, 8 de agosto de 1904.
Recebi sua carta de 31 de julho. Peço desculpas por minha negligência em não devolver o ‘Ill. Mitteilungen’ prontamente. Enviá-lo-ei imediatamente, e agradeço por ter me emprestado.
Durante o mês de julho fizemos somente duas experiências com o Flyer No 2, e elas foram de mais valia pelas lições que ensinaram do que para fins de apresentação. Após a reconstrução de algumas partes da máquina, retomamos a prática na semana passada e fizemos duas experiências na terça-feira, duas na quinta-feira, duas na sexta-feira e três no sábado. Um dos vôos de sábado alcançou 600 pés [183 metros], o melhor que conseguimos com a máquina até agora. Temos muita dificuldade em obter velocidade para decolar. Embora a nova máquina se eleve a uma velocidade de aproximadamente 23 milhas [10 m/s ou 37km/h], somente após a velocidade atingir de 27 a 28 milhas [de 12 a 12,5 m/s ou de 43 a 45 km/h] é que a resistência cai abaixo da propulsão. Descobrimos ser praticamente impossível alcançar uma velocidade superior a 24 milhas [10,7 m/s ou 38,6 km/h] em uma pista da extensão disponível e, como os ventos são freqüentemente muito brandos e cheios de calmarias em que a velocidade cai a quase zero, a velocidade relativa está quase sempre abaixo do limite e não podemos prosseguir. É lamentável não podermos trocar um pouco de nossas calmarias por alguns dos dias de vento do Prof. Langley, que costumavam preocupá-lo tanto. Evidentemente teremos que construir um dispositivo de decolagem que nos seja útil independentemente de haver vento, e agora estamos projetando um. Enquanto isso tiraremos proveito dos dias em que os ventos estiverem adequados.”
Em setembro de 1904, os Wright concluíram seu dispositivo de decolagem; consistia num sistema de catapultagem, testado pela primeira vez no dia 7. Com esse sistema – registra o diário dos irmãos – eles fizeram vôos circulares de cinco minutos cobrindo cinco quilômetros de distância, em 9 de novembro e 1o de dezembro de 1904. Tratavam-se de vôos recordes para eles.
Apesar desses serem vôos importantes, o aeroplano motorizado dos Wright não servia como meio de transporte: uma vez que pousasse longe do local de partida, não poderia decolar novamente, pois lhe faltaria a catapulta.
Quando Santos Dumont voou no 14-bis, em 12 de novembro de 1906, os irmãos norte-americanos não ficaram alheios ao seu feito; muito pelo contrário, sentiram verdadeiro interesse por sua máquina. Prova-o uma carta que Wilbur dirigiu ao Capitão Ferber:
“Caro Capitão Ferber:
Meu irmão e eu tomamos conhecimento, por uma correspondência de Paris publicada no New York Herald, que o público francês apreciou grandemente um vôo de 220 metros em linha reta de Santos Dumont, num aeroplano de sua construção. Ficaríamos muito satisfeitos de conhecer notícias exatas sobre as experiências de Bagatelle, e estamos certos de que fareis para nós um relatório fiel dos ensaios e uma descrição da máquina voadora, acompanhada de um esquema. Já tivemos a oportunidade de ver, numa gravura do New York Herald, que o aeroplano repousa na terra sobre três rodas, deduzimos então que necessário se faz, a Santos Dumont, uma corrida prévia para decolagem, isto realizado sobre um campo extenso e uniforme. Com a catapulta de lançamento que empregamos, Orville e eu saltamos diretamente no ar, com a velocidade adequada, de uma forma mais prática. Desde que os franceses julgam sensacional desempenho um vôo em linha reta de apenas 220 metros, estamos certos de encontrar excelente ambiente se chegarmos a fazer exibições na França. Entretanto, a viagem e o transporte da máquina e da catapulta, obrigarão despesas elevadas para dois pobres mecânicos de Dayton. Por isso, caro Capitão Ferber, se técnicos franceses, escolhidos por vós, desejarem vir a Dayton, para eles faríamos a exibição da máquina no campo vizinho, com um vôo de cinco minutos, em circuito completamente fechado, cedendo-lhes opção para o desempenho e venda da máquina, mediante o pagamento de 50.000 dólares.
Sinceramente,
Wilbur Wright”
Nessa carta os Wright insinuaram que o sistema de catapultagem era mais prático, o que foi duplamente desmentido; primeiro, por eles próprios, quando também evoluíram para o uso de rodas; depois, pelos avanços tecnológicos da engenharia aeronáutica, incorporando definitivamente o trem de pouso ao avião.
Essa carta revela ainda a estupefação dos Wright diante do meio empregado por Santos Dumont para alçar vôo. Ambos desejaram obter “notícias exatas” a respeito das “experiências de Bagatelle”. Ainda solicitaram “um relatório fiel dos ensaios e uma descrição da máquina voadora, acompanhada de um esquema”; todavia o detalhe que mais os preocupava, que mais os deixava curiosos, era como o 14-bis decolava sem o auxílio de catapultas e torres providas com discos de metal. Eles não afirmaram, na carta, que eram capazes de fazer o mesmo, que a máquina na qual teriam executado vôos podia decolar, voar e aterrissar, tudo pelos próprios meios do aparelho.
Há mais: em 1907 a revista Scientific American e o Aeroclube dos Estados Unidos passaram a oferecer um prêmio aeronáutico, o Troféu Scientific American, a quem realizasse um vôo mecânico de um quilômetro em linha reta.
Nessa época, nos Estados Unidos, os membros da chamada Associação de Experimentos Aéreos trabalhavam em sua terceira máquina motorizada, o June Bug, e acharam que poderiam conquistar o troféu com ela. O piloto seria Glenn Curtiss. A associação enviou então um cabograma ao Aeroclube dizendo que faria uma tentativa em 4 de julho de 1908. O pedido apanhou Augustus Post, secretário do Aeroclube, de surpresa. Como todos, ele havia assumido que os Wright seriam os primeiros a se candidatarem.
Post discutiu a situação com Charles Munn, editor da Scientific American e doador do troféu. Munn rapidamente escreveu para Orville Wright no dia 4 de junho perguntando-lhe se ele pretendia competir. Outra carta sua, datada de 25 de junho, expressava sua esperança de que a máquina Wright pudesse ser modificada de modo a decolar sem o uso de trilho ou catapulta, porque, do contrário, ela estaria desqualificada para o ingresso na competição. Munn ainda disse que poderia postergar a tentativa de Glenn Curtiss até que os Wright fizessem as alterações necessárias em sua máquina, mas mudou de idéia ao receber a seguinte carta de Orville:
“Dayton, 30 de junho de 1908
Recebi sua carta de 25 de junho. Não consegui pensar em nenhum modo de modificar nossa máquina para que esta pudesse concorrer ao Troféu Scientific American em um mês ou dois. Todas as nossas máquinas foram projetadas para decolar de um trilho. As mudanças necessárias requereriam muito mais tempo do que dispomos, e até lá estaremos ocupados com provas em Fort Myer, que começarão em agosto.
Pessoalmente, penso que as máquinas aéreas do futuro decolarão de trilhos, ou com a ajuda de dispositivos especiais. O sistema de rodas pneumáticas, agora usado na Europa, não se provou satisfatório, exceto em campos extensos, e provavelmente será mais fácil arranjar trilhos pequenos que campos extensos. Decerto que rodas podem ser acopladas na nossa máquina, bem como às outras, o que significa que a regra relativa à decolagem não nos impede absolutamente de competir, mas a mesma é para nós no momento um grande inconveniente. Na primeira oportunidade prepararemos uma máquina para decolar sem o uso de trilho.”
Os pretextos de Orville para não ingressar no troféu Scientific American não resistem ao menor exame, face aos documentos conhecidos. Não foi por falta de tempo que ele deixou de concorrer ao troféu, pois tanto ele quanto seu irmão já vinham tentando acoplar rodas em seus aparelhos desde 1906, como atesta a carta enviada ao Capitão Ferber na qual pedem detalhes do trem de pouso do 14-bis de Santos Dumont.
O fato é que a colocação de rodas num avião não é tarefa simples: pelo menos, não é o mesmo que colocar rodas numa bicicleta. Faz-se necessária a construção de um trem de pouso que, além de elevar o peso do conjunto, altera completamente o ângulo de ataque do aparelho. E tanto não é tarefa simples que, embora Orville finalize a carta dizendo que “na primeira oportunidade” prepararia uma máquina para decolar “sem o uso de trilho”, só aprenderia a construir um avião com rodas, capaz de decolar autonomamente, dois anos depois, em 1910.
A previsão de Orville de que os aviões do futuro decolariam de trilhos ou com a ajuda de catapultas mostrou-se completamente equivocada: em poucos anos a decolagem sem esses artifícios, demonstrada publicamente em 1906 por Santos Dumont, seria adotada por todos, inclusive pelos próprios irmãos Wright.
Os vôos motorizados dos Wright de 1903 foram vôos por acaso, só efetuados graças à ventania que reinava no momento dos testes. Em tempo calmo o Flyer 1 não decolava.
Uma evidência disso é que até hoje ninguém conseguiu fazer voar uma réplica exata do Flyer 1: em 1953, na edição de dezembro, a revista The National Geographic Magazine publicou o artigo A aviação olha adiante em seu qüinquagésimo aniversário, do vice-almirante Emory S. Land, que informou que, no início daquele ano, vários grupos decidiram construir réplicas da máquina original dos Wright.
Todos eles não obtiveram sucesso. Um deles, embora tivesse dez engenheiros aeronáuticos norte-americanos envolvidos, abandonou o projeto, pois estes simplesmente não acreditaram que a máquina fosse capaz de voar.
Aliás, o norte-americano Ken Hyde, exímio construtor de réplicas do primeiro Flyer, teve a seguinte declaração estampada na primeira página do jornal The News Observer, de 15 de dezembro de 2002:
“É MAIS FÁCIL COLOCAR UM HOMEM NA LUA DO QUE FAZER UMA RÉPLICA EXATA DO AEROPLANO DOS WRIGHT VOAR.”
De fato, em 17 de dezembro de 2003, a tentativa de repetir o vôo dos irmãos Wright, 100 anos depois, foi um fiasco. A réplica do Flyer 1 não decolou, durante a cerimônia nos Estados Unidos, e pior, ao deixar o trilho embicou numa poça de lama.
No início do século XX, muitos eram os que duvidavam da possibilidade do vôo mecânico, entre esses, alguns renomados cientistas, como o físico inglês Lorde Kelvin (1824-1907): Kelvin dizia que o peso do motor exigiria asas enormes que produziriam um arrasto muito grande, exigindo mais potência do motor, levando a um raciocínio circular.
Quem foi que, então, provou ao mundo a realidade do vôo mecânico?
Nem mesmo o mais fervoroso adepto dos irmãos Wright, ou de qualquer outro precursor, o pode negar: foi o brasileiro Alberto Santos Dumont, quando voou 220 metros em seu avião denominado 14-Bis, na data de 12 de Novembro de 1906. No seu livro Aviation, de 1907, Ferdinand Ferber escreveu:
“A 23 de outubro, diante da comissão de aviação, às 4h45min da tarde, o aeroplano deixa o solo suavemente e sem choque. A multidão, estupefata, tem a impressão de um milagre; muda de admiração primeiro, solta um brado de entusiasmo no momento da aterrissagem e carrega o aviador em triunfo. (...)
O recorde foi elevado aos 220 metros um mês após, e a notícia se espalha pelo mundo inteiro com a rapidez do raio. Uma nova era começava a partir desta data porque o encanto tinha sido quebrado! Estava provado que as máquinas voadoras podiam voar.”
O feito de Santos Dumont foi o grande propulsor da aeronáutica; a partir dele, ninguém mais duvidou da realidade do vôo mecânico. Tanto isso é verdade que seus 220 metros constituem o primeiro recorde da aviação homologado pela Federação Aeronáutica Internacional.
Há um episódio famoso corroborante dessa afirmação: em 25 de julho de 1909, Blériot tornou-se o grande herói da aviação francesa ao atravessar o Canal da Mancha, que separa a França da Inglaterra. Guilherme II, Imperador da Alemanha, resumiu a sensação reinante numa única frase, que apareceu estampada em vários jornais: “A Inglaterra não é mais uma ilha.” Santos Dumont, em carta, assim parabenizou Blériot, seu amigo:
“Esta transformação da geografia é uma vitória da navegação aérea sobre a navegação marítima. Um dia, talvez, graças a você, o avião atravessará o Atlântico.” Blériot, então, respondeu: “Eu não fiz mais do que segui-lo e imitá-lo. Seu nome para os aviadores é uma bandeira. Você é o nosso líder.”
A resposta de Blériot não se tratava de mero elogio. Essas palavras foram ditas por um dos maiores concorrentes de Santos Dumont ao Prêmio Aeroclube da França, pelo homem que poderia ter entrado para a História como o primeiro no mundo a voar em avião, pelo homem que por um triz não se tornou o inventor do avião!
Maior reconhecimento de sua glória, talvez Santos Dumont nunca tenha recebido.
http://www.cabangu.com.br/pai_da_aviacao/9-luso/wrigth/rodrigo-visioni.htm
Obrigado pelo excelente texto!
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