sábado, 13 de setembro de 2008

ESTRATÉGIA ATÔMICA

A estratégia atômica - ou melhor, a aplicação pela estratégia das conseqüências da arma atômica - produziu importantes reviravoltas na concepção do emprego das forças, sob o ponto de vista da guerra ou da manutenção da paz. É interessante desmontar o mecanismo pelo qual se produziram as transformações. Poder-se-á, assim, melhor medir a importância dessas reviravoltas e, talvez, tentar prever os possíveis desfechos da evolução em curso.

IMPORTÂNCIA E ORIGINALIDADE DA ARMA ATÓMICA

A arma atômica, servida por modernos meios de lançamento, não é, como algumas vezes se proclamou, inexatamente, senão uma arma como as outras, apenas mais possante. Pela sua potência, antes de mais nada, ela está fora de proporção com tudo o que havíamos conhecido. Uma bomba atômica média, de 20 kt, produz força explosiva igual à de uma salva de 4 milhões de canhões 75. Uma bomba termonuclear média de l Mt representaria uma salva de 200 milhões de canhões 75! Ora, esta potência enorme, cuja eficácia multiplica-se, mais ainda, pelas precipitações atômicas, é desencadeada e colocada em seu destino por alguns homens, somente. É uma revolução extraordinária.

Como, por outro lado, o alcance dos vetores tende a atingir o valor de meio meridiano terrestre, essa arma vai poder atingir não importa que objetivo sobre o globo terrestre, com precisão notável; atualmente, estamos ainda no quarto de meridiano, o que quer dizer que uma única arma cobre com sua ameaça todo o hemisfério do qual ela é o centro.
Em decorrência desta dupla característica (potência e alcan¬ce), a arma atômica produz um fenômeno inteiramente novo: não mais existem relações entre a potência e a massa. Ontem mesmo seriam necessários 1.000 aviões para destruir Hamburgo, e todos os canhões de um exército para destruir Berlim; hoje, cada uma dessas destruições poderia ser executada em uma única missão individual.
Por outro lado, essa potência de fogo extraordinária tem mobilidade quase total, que contrasta com o grande peso das massas armadas, e que permite atingir não importa que ponto do território. A defesa das fronteiras pela muralha humana que constituem os exércitos mostra-se impotente para proteger o país contra a destruição física, ou a contaminação nuclear. As Forças Armadas tradicionais aparecem assim completamente inúteis, pelo menos numa primeira análise.

AS MODALIDADES DA ESTRATÉGIA ATÓMICA

Para proteger-se desse perigo sem precedentes não existem, parece, senão quatro tipos de proteção possíveis:

- a destruição preventiva das armas adversas (meio ofensivo
direto);

- a interceptação das armas atômicas (meio defensivo);

- a proteção física contra os efeitos das explosões (meio defensivo);

- a ameaça de represálias (meio ofensivo indireto).

Essas quatro direções foram exploradas conjuntamente, com fortunas diversas, e terminaram por combinar-se em fórmulas estratégicas muito complicadas.

l - A destruição preventiva, senão das armas atômicas, difíceis de localizar, pelo menos dos meios de produção e de lançamento, pareceu inicialmente ser a melhor fórmula. A superioridade americana era considerável, e os meios de lançamento adversos, constituídos por aviões ligados a bases aéreas facilmente localizáveis, permitiam esperar a destruição da quase totalidade dos meios inimigos. Uma tática de destruição foii desenvolvida, fundamentada num bom plano de fogos atômicos e prevendo o ataque a cada um dos objetivos conhecidos.

Mas essa situação favorável durou pouco: os objetivos multiplicaram-se; por causa do aumento dos meios do adversário e da tática de dispersão que ele desenvolvia; bem mais que isso, muitos objetivos não podiam ser conhecidos com antecedência, em razão das medidas de dispersão tomadas quando do alerta dado em campos de aviação sumariamente equipados, mal conhecidos ou completamente desconhecidos. Por outro lado, a política pacífica proclamada pela OTAN dificilmente permitiria tomar a iniciativa de desencadeamento de ações de bombardeio. Este desencadeamento, por conseguinte, não podia ser contemplado, senão como uma resposta, e seria necessário sofrer o primeiro ataque inimigo. Isto tirava à destruição dos meios adversos seu caráter preventivo, o que conferia importância capital aos outros tipos de proteção, a interceptação, a proteção física contra os efeitos das explosões e a ameaça de represálias, que se irão examinar um pouco mais adiante.

Mas, ao mesmo tempo, o estudo do problema da destruição das forças permitia concluir pelo interesse primordial do ataque de surpresa: a partir de certo nível de meios, tal ataque inimigo poderia causar-nos destruições tão graves que nossa resposta seria tornada problemática. Esse problema do "Pearl Harbor" atômico esteve presente durante anos no espírito dos estados-maiores, e levou ao estabelecimento de uma tática anti-surpresa, que se verá, a propósito de outros tipos de proteção, e que se tornou muito eficaz.

Quanto ao valor da resposta, cumpriria que ela fosse mantida com uma eficácia provável suficiente para suprimir, se possível - ou, pelo menos, reduzir sensivelmente - a capacidade de destruição adversa. Ora, a modificação dos meios de lançamento e o aparecimento dos foguetes aumentaram consideravelmente a dificuldade do problema. Toda uma escola pretende mesmo que uma tática contraforças esteja votada ao insucesso. A verdade é que se tornou impossível tudo destruir; mas que, por outra parte, seria extremamente perigoso deixar subsistir uma fração importante das forças adversas. No mínimo, sempre se poderá destruir os meios muito vulneráveis, como os aviões antigos e os radares, que constituem uma parte importante das possibilidades adversas. Se bem que hoje se esteja seguro de que uma tática "contraforças" teria eficácia apenas parcial, sua aplicação é sempre considerada como necessária, o que leva a multiplicar os meios de lançamento. Como, por outra parte, grande número de objetivos situa-se nos países satélites, onde se deseja limitar a destruição às instalações militares, a "tática de destruição" deve ser muito precisa, e afastar o emprego de explosões de grande potência. Tudo isto conduz a programas muito onerosos.

Eis porque, em fim de evolução, certas pessoas apresentaram a idéia de uma ação realmente preventiva, cujo rendimento seria bem maior, em decorrência tanto do fato de que ainda não se teria sofrido as perdas da primeira rajada inimiga, como do fato de que o adversário, ainda não alertado e disperso, sofreria destruições maiores. Para conciliar - de forma mais ou menos convincente - a concepção desta ação preventiva com aquela, inteiramente política, de uma renúncia à agressão, esta ação preventiva recebeu o nome particular de "preemptiva", sublinhando-se que ela não seria desencadeada, a menos que - e quando - indicações seguras permitissem prever a iminência de um ataque inimigo.

De qualquer modo, a proteção completa por uma destruição preventiva dos meios adversos afigura-se tremendamente problemática. Sua ação seria indispensável no curso de um conflito, mas com resultados, apenas imparciais. Por conseguinte, impõe-se o emprego de outros meios de proteção.

2 - A interceptação das armas atômicas apareceu bem depressa como podendo ser o elemento-chave da nova estratégia. Tornado absoluto, de nosso lado, o valor da interceptação, não mais haveria necessidade de ação preventiva - tão perigosa politicamente - nem de proteção física. A ameaça de represálias adversas perderia todo o poder.

Mas esse objetivo ideal é tecnicamente muito difícil de atingir e de manter. Na gigantesca corrida tecnológica que se abre entre a interceptação e a penetração, a cada progresso da interceptação responderá um novo progresso da penetração. Desenvolve-se assim, em tempo de paz, uma nova forma de estratégia, apenas esboçada nos conflitos anteriores pelo que se havia chamado "a corrida armamentista".

Essa estratégia não trava batalhas, mas procura sobrepujar o desempenho dos materiais adversos. Dá-se-lhe o nome de "estratégia logística", ou de "estratégia genética". Sua tática é industrial, técnica e financeira. É uma forma de usura indireta que, em lugar de destruir os meios adversos, contenta-se em desclassificá-los; acarretando com isso despesas enormes. É assim que os radares da Batalha da Inglaterra permitiram a primeira vitória aérea defensiva da História. Mas os aviões voando a grande altitude desclassificaram todos os radares e todos os canhões antiaéreos. Depois, os engenhos terra-terra, ininterceptáveis, desclassificaram os aviões ligados a bases fixas e vulneráveis, enquanto que os engenhos terra-ar tornaram sua interceptação muito provável. Mas os engenhos ar-terra permitem aos aviões atingir seu objetivo, mantendo-se fora do alcance dos engenhos terra-ar da defesa aérea, e a interceptação dos engenhos terra-terra aparece agora possível etc.
Assim se trava uma guerra silenciosa, aparentemente pacífica, mas que poderia mostrar-se, por si só, decisiva. No entanto, a corrida jamais termina, e a interceptação, com altos e baixos, permanece problemática.

3 - Poder-se-á, então reduzir os efeitos dos fogos atômicos de forma satisfatória, por meio de uma proteção física? Antes da existência da arma termonuclear, soluções se afiguravam possíveis: meter-se debaixo da terra, dispersão, imobilidade, proteção por obras de cimento armado etc. Nenhuma destas soluções proporciona proteção absoluta, mas o rendimento das explosões seria considera-velmente reduzido (na melhor hipótese, cerca de 25 vezes). Com a arma termonuclear, a proteção conserva seu valor relativo, mas a potência do ataque cresce de tal modo que é difícil esperar-se obter proteção suficientemente eficaz. Por outro lado, seria preciso consagrar a isso somas astronómicas, e muitos concluem pela necessidade de fazer todo o esforço nos meios ofensivos e na sua capacidade de penetração.

4 - É que, com efeito, para além de todos esses procedimentos defensivos de valor variável e incerto, somente existe proteção verdadeira na ameaça de represálias. Para isso é preciso possuir uma força de ataque, uma force de ataque de potência suficiente para desviar o adversário do propósito de empregar a sua força. É a estratégia da dissuasão sob sua forma inicial mais simples: procura-se atingir diretamente a vontade do adversário, sem passar pelo estágio intermediário de uma prova de força. Com essa idéia geral, ver-se-á desenvolver-se uma estratégia cada vez mais complexa e cada vez mais sutil.

A ESTRATÉGIA DA DISSUASÃO

a) A dissuasão nuclear.


A dissuasão repousa antes de tudo sobre um fator material: é preciso ter um grande poder de destruição, uma boa precisão e uma boa capacidade de penetração. Viu-se, a propósito da inter-ceptação, a importância dessa luta permanente para conservar uma capacidade de penetração suficiente. Além disso, como não se faz a guerra, o valor exato das capacidades de interceptação e de penetração permanece conjectural - e também, o poder de destruição do adversário. Assim compreende-se melhor a importância do U-2, cujos vôos permitiam medir o valor de interceptação adverso, e a indignação dos soviéticos quando viram que o adversário fazia tais experiências.

Esse fator material, já bastante incerto, complica-se singularmente, caso se faça entrar em linha de conta as hipóteses sobre qual dos dois partidos será o primeiro a atirar. Tal cálculo não tinha grande importância à época dos aviões relativamente lentos, porque os prazos de execução decorrentes do alerta eram tais que ataque e resposta cruzavam-se no ar. Com os foguetes, ao contrário, não mais há dissuasão, se a primeira rajada inimiga possuir capacidade de destruição tal que nossa resposta seja consideravelmente enfraquecida. Assim, o valor da dissuasão encontra-se ligado, não à potência de fogo da força de ataque, mas à sua potência de fogo restante, após ter ela sofrido os efeitos da primeira rajada; ligado, por conseguinte, à sua capacidade de sobrevivência. Daí uma tática de sobrevivência, muito onerosa e muito complexa, visando a proporcionar um alerta quase instantâneo (grandes radares, satélites, transmissão automática, calculadoras eletrônicas etc); um desencadeamento de missões de tiro antes da chegada da salva (aviões mantidos em vôo ou em alerta a 15 minutos, foguetes de carga de propulsão sólida etc); uma proteção dos engenhos de tiro, pela mobilidade (submarinos atômicos), pelo cimento armado, para forçar o adversário a despender um grande número de armas sobre cada objetivo, ou pela dispersão.

Os resultados da equação, dando elementos sobre o obtido pela primeira rajada adversa e pela resposta, dependerão do valor relativo das táticas de sobrevivência de cada parte e, também, da avaliação da precisão dos tiros. Esses resultados tornam-se assim cada vez mais conjecturais.

Mas tudo o que precedeu tem quase o caráter de uma geometria, em face do fator psicológico, muito mais importante e muito mais imponderável. Quer-se impressionar o adversário até o ponto de impedi-lo de usar sua força de ataque. Então, é preciso, antes de mais nada, ter uma capacidade de destruição tal que ele a tema suficientemente; em seguida, levá-lo a crer que se é capaz de desencadear a represália - em resposta, ou numa primeira rajada - em tal ou qual hipótese.

A noção de capacidade de destruição suficiente sob ponto de vista psicológico, foi objeto de apreciações muito diversas. Fundamentando-se no precedente de Hiroshima e Nagasaki, pensam alguns que a destruição de algumas grandes cidades bastaria para fazer capitular não importa que Estado moderno. Outros, indo mais longe, calculam a fração do poder econômico adverso que se deveria destruir, para "ferir gravemente" o inimigo, e infligir-lhe, assim, uma perda de poder que constituiria para ele handicap durável e inaceitável. Certos teóricos americanos, enfim, consideram que a única destruição eficaz é a das armas nucleares inimigas, porque desarma o adversário. Portanto, a capacidade de destruição deveria permitir uma contrabateria muito desenvolvida, a cujos resultados juntar-se-ia o desgaste dos estoques adversos, causado pelo ata¬que inimigo contra nossos próprios meios de lançamentos. Esses diversos pontos de vista esquematizam-se em duas táticas opostas, ditas "contraforças" e "contracidades". A escolha entre essas duas soluções é bastante difícil: viu-se que a tática "contraforças" seria muito eficaz, caso se pudesse estar seguro de executá-la quase que completamente. Mas, além de ser necessariamente muito custosa, ela se torna cada vez mais incerta, à medida que as táticas de sobre¬vivência se aperfeiçoam. Então, se é fortemente tentado a voltar-se para a tática "contracidades", que é bem mais fácil; portanto, de execução menos onerosa, e que se chamou "estratégia da dissuasão mínima". Somente, então, se percebe que, se não se atacou, e por conseguinte, não se destruiu o essencial da capacidade de ataque adverso, a cada destruição que promovermos, sofreremos uma punição terrível. De troca em troca de ataques, caminha-se para uma destruição integral recíproca e, talvez, desigual e em detrimento nosso, que nenhum sentido faz e que em todo caso, nos dissuade, pelo menos tanto quanto ao adversário. Além disso, não existe forçosa¬mente simetria na dissuasão: os Estados Unidos serão mais sensí-veis à destruição de suas grandes cidades que os soviéticos. Esta pode ser a explicação da escolha americana em favor da tática "contraforças", e da possível escolha dos soviéticos em favor da tática "contracidades".

Assim, a escolha também pode trair segundas intenções muito importantes: quem joga o jogo "contracidades" crê no valor absoluto da dissuasão que executa se não, em caso de conflito, não haverá outro recurso que o suicídio recíproco. Quem joga o jogo "contraforças" duvida do valor da dissuasão, e admite a possibilidade de um conflito atómico, comportando o emprego mais ou menos completo das forças de ataque estratégicas, o que aumenta sua capacidade de dissuasão. De qualquer modo, a escolha impõe-se às potências nucleares secundárias (Grã-Bretanha, França e, amanhã, a China), que não podem, em absoluto, dispor dos meios necessários para conduzir uma tática contraforças. Até que ponto tal tática "contracidades", forçosamente limitada, pode dissuadir, portanto, neutralizar, um dos dois grandes? Como as capacidades de destruição são muito desiguais, o equilíbrio não pode ser restabelecido senão por uma segunda forma de persuasão: o temor de ver o mais fraco de qualquer modo desencadear suas represálias.

O primeiro grau dessa operação consiste em dar a tal desencadeamento um fundamento racional que lhe proporcione boa ve-rossimilhança. É o que se chamou credibilidade. Esta resulta não somente do valor da equação material que se vem de ver, e da qual se proclamará o caráter positivo, como também da comparação entre o risco e o que está em jogo. Uma Suécia defendendo sua liberdade encontrar-se-ia em presença de uma aposta total, enquanto que a URSS, por exemplo, tiraria de sua conquista apenas um benefício limitado.

O suicídio da Suécia poderia ser compreendido um pouco como o de um comandante de navio preferindo fazer explodir um barril de pólvora, antes que render-se aos piratas. As perdas que então sofreria a URSS seriam fora de proporção com seus eventuais ganhos. Aí se encontra a base lógica dos pequenos dissuaso-res nacionais. Acrescentemos que esse jogo muito perigoso pressupõe certa confiança na dissuasão... Se o adversário puder ser persuadido de havermos calculado que, em tal caso, teríamos interesse em desencadear nossas forças, ele mais facilmente acreditará na ameaça. Notemos logo que o jogo é bilateral, e que credibilidades apostas sobre uma parada comparável tendem a anular-se...

Intervém, então, um segundo grau de persuasão, fundamentado desta vez no contrário, na Irracionalidade. Caso se esteja tratando com um louco, não se deve pressioná-lo fortemente demais em seus entrincheiramentos! A firmeza de Dulles, as cóleras e o sapato de Kruchev,7a obstinação fria de De Gaulle, correspondem a esse jogo psicológico, cuja influência pode ultrapassar todos os cálculos extraídos do fator material. É que, na realidade, o elemento decisivo repousa sobre a vontade de desencadear o cataclismo. Fazer crer que se tem essa vontade é mais importante que todo o resto. Naturalmente cada um blefa, mas até que ponto?

Tudo isso leva a uma dialética extraordinariamente sutil, visando a apreciara probabilidade das reações do adversário, em função de seus meios e de sua vontade de empregá-los; e, também, em função da opinião que ele pode ter de nossos meios e de nossa vontade de empregá-los; e mesmo da idéia que ele faz da idéia que nós fazemos de seus meios e de sua vontade de empregá-los.

Dessa montanha de avaliações conjecturais, de hipóteses e de apreciações fundadas sobre intuições complexas, somente emerge um único fator de valor certo: a incerteza. No fim de contas, é a incerteza que constitui o fator essencial da dissuasão. Do mesmo modo ela deve ser objeto de uma tática particular, cuja finalidade é acrescê-la ou, pelo menos, mante-la. É preciso que as disposições materiais adotadas abram diversas possibilidades, e que estas sejam conheci¬das pelo adversário. É preciso, por outro lado, que sejam semeadas dúvidas sobre todos os elementos que permitiriam avaliar nossas verdadeiras intenções. Naturalmente, é preciso evitar, em absoluto, toda a ação ou toda a declaração que viria a afastar uma das hipóteses que o adversário possa temer. É assim, por exemplo, que as campanhas feitas para a renúncia à arma atômica tática são absolutamente contrárias ao jogo bem compreendido da estratégia de dissuasão. O mesmo acontece com as declarações americanas sobre o míssil gap (o hiato dos mísseis, expressão utilizada no início da década de 60 para referir-se ao alegado atraso americano no desenvolvimento e produção de mísseis, em comparação com a URSS) e a renúncia à estratégia de resposta maciça.

b) As dissuasões complementares.

De qualquer modo. os meios existentes, valorizados pela incerteza, criam certo grau de dissuasão. A partir do momento em que os dois campos dispõem de armas nucleares, esse "certo grau" raramente será absoluto. Quer dizer então, que existe uma margem de não-dissuasão, por conseguinte, um certo grau de liberdade de ação para cada um dos adversários, situado na gama de ações me¬nores periféricas, ou mesmo limitadas, nas quais o que está em jogo mostrar-se-ia excessivamente fraco para justificar a aplicação da ameaça de represálias.

A consequência desse estado de coisas (além do mais conjecturai, como tantas outras coisas, note-se, de passagem) leva à abertura de um novo domínio da estratégia de dissuasão, que terá por finalidade completar, por outros meios, o efeito de dissuasão da ameaça nuclear, a fim de reduzir- e, se possível, suprimir - toda margem de liberdade de ação do adversário.

Para atingir esse resultado de dissuasão, dispõe-se de dois procedimentos. O primeiro, material, consiste em apresentar ao adversário um sistema de forças militares capaz de anular as operações que ele poderia executar, graças à sua margem provável de liberdade de ação. É a razão de ser dos escudos de forças táticas, aeroterrestres ou aeronavais, que defendem zonas sensíveis. É, igualmente, a razão de ser dos corpos de intervenção, capazes de se deslocar para as regiões ameaçadas. Estes meios materiais permitem evitar-se o famoso dilema de tudo ou nada, do desencadeamento do holocausto recíproco ou da aceitação do fato consumado; o segundo procedimento, de caráter psicológico, consiste, em estabelecer e manter o risco de desencadeamento de represálias, se um conflito local ocorrer. Esta ameaça de ascensão aos extremos restabe¬lece certo grau de incerteza sobre a importância do que está em jogo, mesmo parecendo ser isso, inicialmente de caráter limitado. Deste ponto de vista, a existência de armas atômicas táticas, com os riscos de ascensão que seu emprego poderia comportar, desempenha papel muito importante no domínio da dissuasão. Tal risco de ascensão aparece a muitos como um perigo. É um perigo, se a dissuasão não funcionar. Mas, ao contrário, na estratégia da dissuasão, é um fator de segurança suplementar. Este aspecto não deve ser perdido de vista.
Tal estratégia complementar da dissuasão atômica torna-se cada vez mais importante, à medida que as ameaças de represálias se neutralizam, mais ainda, reciprocamente. Nessa situação, o desencadeamento de represálias torna-se cada vez menos "crível", e assim igualmente a ameaças de ascensão. A estratégia de dissuasão, com todos os seus dispêndios, parece terminar em um impasse: tende-se a voltar a uma estratégia não atômica, se bem que ao esforço atômico, exorbitante, deva-se acrescentar um esforço em armamentos clássicos, como se a arma atômica não existisse. É a tendência que se vê desenvolver atualmente, desde que as forças de ataque têm, ou vão ter, boa capacidade de sobrevivência.

É necessário, no entanto, voltar-se exatamente ao ponto de partida, isto é, a uma situação análoga à da fase anterior à existência das armas atômicas. Com efeito, a existência de armas atômicas mantém um risco cuja apreciação depende, essencialmente, dos fatores de incerteza e de irracionalidade que se viram acima. Conquanto esses fatores tenham importância não desprezível, não se pode imaginar ser possível, por exemplo, reeditar um grande conflito clássico do tipo 1939-45, porque é impossível estar-se seguro de que, neste caso, a ascensão aos extremos não teria lugar. Eis porque se pode exercer um grau elevado de dissuasão clássica, com meios clássicos e no entanto limitados: a quantidade de forças e de riscos que seria necessário engajar para derrotá-los criaria uma situação excessivamente grave para que se possa vangloriar de que ela não conduz à ascensão. Assim, é possível ver-se efetivar uma dissuasão quase absoluta: as forças de ataque em equilíbrio dissuadem de um conflito nuclear integral; as forças clássicas dissuadem de um conflito limitado; o risco de ascensão sempre presente, dissuadindo de empenhar nesse conflito limitado uma aposta excessivamente alta. O equilíbrio de conjunto é, então, atingido por essas três ações complementares e solidárias, cuja eficácia depende em grande parte do fator de incerteza.

É preciso notar, no entanto, que mesmo nessa situação - a experiência bem o provou - a dissuasão deixa subsistir uma estreita mas importante margem de liberdade de ação: aquela que explora a estratégia indireta soviética no tabuleiro mundial. A ação política e econômica, a utilização de movimentos revolucionários estrangeiros e mesmo os conflitos conduzidos por interposta pessoa escapam à paralisia pela dissuasão; pelo menos aquela que se acaba de estudar. A mesma lógica que conduziu a construir um sistema clássico de dissuasão complementar deve levar a estabelecer um sistema de dissuasão no domínio indireto.

O Ocidente está à procura de uma fórmula plenamente eficaz nesse domínio, mas ainda não a encontrou, por motivos que dizem respeito, sobretudo, à má compreensão do problema. O assunto, muito importante, é em si mesmo demasiado complexa para ser resumido aqui, e será tratado à parte. Mas é bem evidente que a menor fissura no sistema de dissuasão dá a um adversário avisado possibilidades de ação que poderiam, a longo prazo, colocar em perigo todo o sistema de segurança ocidental.

A ESTRATÉGIA DE GUERRA

A despeito de todos os esforços em vista da dissuasão, não se pode garantir que a guerra não eclodirá, justamente devido aos fatores de incerteza e de irracionalidade, cuja importância foi sublinhada. Digamos que, salvo em caso de loucura (que não pode ser excluído, vimos recentemente com Hitler), a guerra seria o resultado de um "erro de cálculo", isto é de uma apreciação demasiado otimista das reações do adversário.- acreditou-se poder praticar tal ou qual ação impunemente, e ter-se-á desencadeado o drama. Qual será então a estratégia da era atômica?
Na sua origem, no período em que a estratégia de dissuasão repousava essencialmente sobre represálias maciças, a estratégia de guerra confundia-se com a estratégia de dissuasão.- o plano de fogos estabelecido à vista da dissuasão teria sido desencadeado. Teriam resultado, de parte a parte, enormes destruições mas, como se pensava que um dos lados (o inimigo) seria posto fora de causa (Thebroken backstrategy, a estratégia da espinha quebrada), a fase de acabar com o adversário se faria com "os restos". Assim, a guerra tomava o aspecto inicial de uma empresa de demolição racional e gigantesca, seguida de uma fase de exploração, por sinal difícil de prever-se, em razão das incertezas de toda a ordem sobre os resulta¬dos do que se chamava, com eufemismo, "a troca nuclear".

Essa visão, um tanto simplista, para não dizer mais, ainda pesa fortemente sobre as concepções militares; inicialmente, por reminiscência, e também porque todos os exercícios de tempo de paz, com a finalidade de verificar e melhorar o valor da dissuasão, referem-se a um estudo da "troca nuclear", o que contribui para fa¬zer crer aí estar a imagem da guerra eventual.

Ora, felizmente, não é assim, ou, pelo menos, essa imagem é somente a de uma hipótese, e da hipótese menos provável: a abertura do jogo pelo desencadeamento dos extremos. Com efeito, pouco a pouco, e sobretudo à medida que a ameaça nuclear adversa tornava-se mais temível, veio à luz a idéia de que a estratégia de guerra deveria ser diferente da estratégia de dissuasão. A estratégia da dissuasão visa a meter medo; portanto, deve assegurar-se a possibilidade de efetuaras destruições aterrorizadoras, justamente para não precisar fazê-las. Mas, se essas destruições devem ser recíprocas, onde está o benefício? Desencadear uma reação cuja resposta levará à sua própria morte é apenas uma forma disfarçada de sanção por haraquiri.

Não é uma estratégia. Pelo contrário, tudo deve ser feito para evitar tal extremo. Uma vez que este raciocínio lógico tem toda a probabilidade de ser bilateral, não há, por conseguinte, senão muito poucas chances de que o adversário inicie o conflito por um ataque nuclear maciço. Este somente se justificaria se, tendo assumido dianteira considerável, ele pudesse abrigar a esperança de colocar-nos fora de jogo desde a primeira rajada; hipótese excluída, desde que as forças de dissuasão conservam suficiente grau de capacidade de sobrevivência. Nessas condições, a maior probabilidade é a de que o adversário abra as hostilidades por meio de uma ação mais ou menos limitada. Coloca-se assim a questão de saber qual deve ser a resposta.

Contrariamente ao em que se poderia acreditar, a resposta a esta pergunta deu lugar a longas controvérsias: com efeito, se o bom senso indicava que se deveria procurar limitar o conflito, numerosos opositores assinalavam que essa intenção limitadora não deixaria de prejudicar a dissuasão, enquanto que um bom ataque maciço seria o único meio de impedir o adversário de desencadear seu ataque limitado. Além disso, os mesmos opositores admitiam, mais ou menos conscientemente, que o ataque maciço produziria destruições tais que a resposta adversa seria bem diminuída, o suficiente para ser suportável. Este argumento relativo à dissuasão é muito sério; vamos logo examiná-lo. No entanto, o que deveria solucionar o debate é ter-se revelado nestes últimos anos que, em qualquer hipótese, a resposta seria terrível. Eis porque o Presidente Kennedy colocou-se no campo dos que queriam renunciar aos princípios da resposta por represálias maciças. O General Maxwell Taylor expôs claramente a nova estratégia de guerra, que chamou a "resposta flexível" (fíexible response), ou resposta variável.

Essa estratégia de resposta variável equivale a prever que cada ação adversa será respondida por uma resposta apropriada, de uma força suficiente para colocar em xeque o inimigo, mas sem envolver mais que a quantidade de forças necessária. Isto não quer dizer que se calque sua conduta sobre a do adversário (por exemplo, poder-se-á responder a um ataque clássico por meio de uma defesa atômica tática, e mesmo por meio de uma ação nuclear estratégica limitada); mas isto quer dizer que cada caso será tratado segundo seus méritos, e que somente em derradeira extremidade se lançará mão do recurso da resposta maciça. Em suma, é uma estratégia que se quer eficaz na resposta, sempre mantendo limitado o conflito.

A originalidade dessa estratégia é combinar a luta militar local e a dissuasão geral, para manter o conflito em certos limites. Guardando-se em reserva a ameaça da resposta maciça, conserva-se grande parte do valor de dissuasão da estratégia do "tempo de paz". Como a dissuasão é bilateral, cada um dos adversários vai jogar no sentido da limitação. Se não houver erros, se o que está em jogo permanece suficientemente limitado, o terçar armas pode se efetuar por pontos, sem "ascensão aos extremos".

Nesse jogo perigoso mas inevitável, a segurança impõe a existência de um sistema muito bom de controle de armamentos, de modo a evitar que a escalada se produza espontaneamente, em decorrência dos executantes, e não transforme um incidente local em um conflito geral. Daí toda uma tática particular, definindo certo número de patamares sucessivos que não devem ser ultrapassados, a não ser por decisões políticas especiais; e assegurando que essas ultrapassagens não se possam verificar sem que autorização tenha sido dada. Então, a guerra aparece como uma escada de numerosos degraus (incidentes, guerra clássica, atômica tática, estratégica limitada, estratégica total etc), esperando-se que a prova de força, se ela se desencadear, será resolvida em um dos níveis intermediários.

Essa estratégia - inevitável, viu-se - levanta duas grandes objeções. A primeira, muito naturalmente, nasce nos países ameaçados de serem teatro desses conflitos "limitados": a idéia de desepenhar o papel de campo de batalha - eventualmente atômico - não lhes parece muito atraente. Em um desastre mundial, seus sacrifícios teriam parecido mais equitativos. Não se irá vender barato sua segurança, em proveito de zonas reservadas, que teriam permitido dispersar os esforços do adversário? A segunda objeção diz respeito à dissuasão, da qual já falamos. Aceitar o conflito limitado já não será convidar a travá-lo e, por conseguinte, reduzir a dissuasão? E caso um conflito limitado se desencadeie, será que os riscos de ascensão aos extremos não irão se encontrar acrescidos? Há nessas duas objeções certa parte de verdade: os dois riscos existem. Não se deve, também, raciocinar por contra-senso sobre o alcance delas. É exato haver uma contradição entre os meios da estratégia de dissuasão (ameaça de recurso aos extremos) e os da estratégia de guerra (limitação dos conflitos). Mas esta contradição não é simultânea: a estratégia de dissuasão se exerce antes da estratégia de guerra. Por outro lado, estas duas estratégias têm em comum os fatores incerteza e irracionalidade, sobre os quais já insistimos, e que, em certa medida, compensam sua contradição: nunca se está seguro de que não haverá recurso aos extremos, mesmo em uma estratégia de intenção nitidamente limitadora. É assim que o efeito de dissuasão pode ser salvaguardado; é assim, ainda, que as zonas que se quereriam "reservadas" não podem vender barato a segurança das zonas em que se travariam as primeiras batalhas. Em resumo, existe completa solidariedade entre a segurança de todas as zonas, assim como na estabilidade da dissuasão.

Além disso, essa solidariedade pode ser reforçada, ou antes, feita mais visível, através de certas disposições, no entanto, limitadas. É o caso, por exemplo, do procedimento consistente em proclamar que tal ou qual objetivo adverso constitui refém, que será destruído pelas forças estratégicas, se tal zona avançada amiga for atacada; e que, se houver resposta limitada inimiga no domínio estratégico, outro tal ou qual objetivo adverso será destruído. É ao longo desta via de emprego limitado e progressivo das forças estratégicas, que poderá ser reduzida a sensação de abandono dos eventuais campos de batalha.

Em todo o caso, o conceito de limitação da estratégia de guerra não deve conduzir, como algumas vezes se afirmou, a definir com antecedência a parte dos "teatros de operações" onde uma agressão não desencadearia represálias e onde aceitar-se-ia conformar-se com a fortuna das armas das forças ali estacionadas; e, por outra parte, a definir, também, os "santuários" protegidos pela ameaça de represálias maciças. Esta repartição geográfica apríorí da dissuasão teria como resultado reduzir a proteção dos teatros de operações; e, quando conflitos nele se desenrolassem, o risco de ascensão estando sempre presente, a probabilidade de ascensão aos extremos nos santuários encontrar-se-ia consideravelmente aumentada.

Do mesmo modo, a proteção dos santuários não poderia ser assegurada -não mais que a dos teatros de operações - por uma ameaça de desencadeamento automático de represálias maciças: na situação atual, essas represálias acarretariam uma resposta devastadora, e somente se teria a satisfação, bastante fútil, de haver causado ao adversário destruições da mesma ordem daquelas que se experimentará. Nesse domínio, a verdade é que a dissuasão deve aplicar-se tanto aos teatros de operações como aos santuários, e que, nos dois casos, a dissuasão deve ser "graduada", isto é, comportar o emprego de respostas "variáveis" e, em certa medida, imprevisíveis, a fim de manter intacto o precioso fator da incerteza.

Eis porque deve-se pensar que os conflitos violentos da idade atómica devem normalmente cingir-se a dois géneros de guerra:nas zonas sensíveis, a ações limitadas, talvez muito violentas, mas muito curtas, e visando a criar um fato consumado, logo seguido de negociações; nas zonas marginais, a conflitos de atrito prolongados, mas relativamente pouco intensos e de caráter clássico ou revolucionário. Em suma, o tipo Sinai e o tipo Coréia Indochina-Laos. Qualquer outro gênero de guerra, sem dúvida, evoluiria muito depressa para a ascensão aos extremos.

Seria imprudente, porém, acreditar que a dissuasão pela existência da arma atômica seja suficiente para impedir os conflitos armados: estes dez últimos anos mostraram que, mesmo com uma superioridade nuclear importante, tais conflitos permanecem possíveis. Com o equilíbrio das forces de frappe - as forças de ataque - a intensidade ou o que está em jogo em tais conflitos poderia aumentar flagrantemente no futuro, a menos que providências eficazes sejam tomadas para completar substancialmente o efeito da dissuasão nuclear com o de forças táticas; e a menos, sobretudo, que o efeito, de dissuasão seja mantido em nível elevado, por meio de táticas apropriadas, cuja importância não se poderia exagerar.

(Introdução a Estratégia de André Beaufre - Cap. 3 - páginas 83 a 104)

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