06/10/2006
Declaração infeliz de ministro do Reino Unido traz à tona debate sobre ocupação estrangeira no território. Ambientalistas destacam que pouca fiscalização e caótica situação fundiária são obstáculos para a preservação da floresta
Por Fabiana Vezzali
Propostas para internacionalizar a Amazônia rondam, de tempos em tempos, as manchetes de jornais e o imaginário popular, ressuscitando o debate já conhecido da ameaça à nossa soberania nacional.
Desta vez, foi o secretário de meio ambiente britânico, David Miliband, apontado como sucessor de Tony Blair, quem levantou a polêmica. Antes de embarcar para o México para participar de uma conferência sobre mudanças climáticas, ele falou ao jornal britânico The Daily Telegraph que pretendia propor a outros países a privatização da floresta amazônica como uma forma de protegê-la. No dia seguinte, diante da avalanche de críticas à declaração, o governo britânico emitiu uma nota pública negando a proposta. “O interesse do governo do Reino Unido não é o de apoiar ou promover a compra da Floresta Amazônica, mas, sim, de trabalhar com os colegas brasileiros (e outros países) para apoiar o manejo florestal sustentável”, afirmava a nota.
Em abril deste ano, a compra de uma grande área na Amazônia por parte de um empresário sueco também gerou polêmica. Após tornar-se proprietário de 160 mil hectares no Estado do Amazonas para “preservar a floresta”, o milionário Johan Eliasch, dono de uma empresa de material esportivo, afirmou que com outros US$ 12 bilhões seria possível repetir seu feito e adquirir toda a Amazônia. Para fazer essa conta, Eliasch calculou que cada hectare do território amazônico poderia ser vendido a US$ 30.
A idéia é considerada ingênua e impraticável pelo coordenador do Greenpeace, Paulo Adário. “Não há como proteger a floresta toda retirando a presença do Estado. A não ser que ele colocasse um guarda em cima de cada árvore. Como faria para se proteger de invasores, por exemplo?” A essência da proposta de Eliasch não reconhece a importância das populações tradicionais e do manejo sustentável para a preservação da floresta. Aproximadamente 20 milhões de pessoas vivem na Amazônia. Além disso, a idéia de comprar toda a floresta não leva em conta que, atualmente, apenas 30% daquele território é área privada e que, portanto, pode ser comercializada. O restante se divide em áreas de preservação, terras indígenas e terras públicas.
O ambientalista explica, no entanto, que o debate sobre uma possível gestão internacional da Amazônia seguirá em evidência, uma vez que está relacionado a outro tema em destaque: as mudanças climáticas do planeta. Dessa forma, a preocupação em reduzir o desmatamento e, conseqüentemente, a emissão de gás carbônico manterá a população mundial atenta à destruição da Amazônia. “O Brasil é hoje o 4º país mais poluidor do mundo, quando se leva em consideração a emissão de gás carbônico provocada pelo desmatamento da floresta. Em primeiro lugar está os Estados Unidos.”
A floresta Amazônica se estende por 7,8 milhões de quilômetros quadrados que abocanham parte do território de nove países da América do Sul. Estão lá 20% da água doce e 30% das espécies de animais conhecidas no planeta. Um patrimônio de biodiversidade ameaçado diariamente pela expansão da pecuária, das lavouras de monoculturas e pelas madeireiras. Estima-se que 17% da floresta já foram destuídos. Apenas entre 2004 e 2005, foram desmatados aproximadamente 19 mil quilômetros quadrados na região. Por mais que a intensidade do avanço agropecuário tenha diminuído - em muito pela baixa do preço da soja no mercado internacional - o número ainda é alarmante.
Para o representante do Ministério do Meio Ambiente, Mauricio Mercadante, a declaração do secretário britânico revela desconhecimento sobre as políticas para preservação da floresta. “Esta é uma visão equivocada que pensa que o governo não está fazendo nada para proteger a Amazônia. Foram criadas 20 milhões de hectares em Unidades de Conservação na Amazônia, considerando que são mais de 100 milhões de hectares de áreas protegidas, entre terras indígenas, florestas e reservas”.
E completa: “O risco de isso acontecer é nenhum. Apenas 25% das terras na região amazônica são privadas, o restante é público. Não há como investidores ou empresas quererem comprar a floresta”. Bem, pelo menos em teoria.
A prática tem se mostrado bem diferente, uma vez que a ocupação de terras públicas é comum na região - muitas vezes com a anuência ou a participação de políticos e de poderosos empresários rurais.
A presença da iniciativa privada nacional e estrangeira na Amazônia já é uma realidade há décadas. Desde os anos 70, empresas e grandes proprietários foram estimulados pela ditadura militar a adquirir terras na região. A abertura da “fronteira agrícola” amazônica deixou como legado a devastação provocada pela abertura de grandes estradas e a ocupação desordenada do território, cuja expressão mais conhecida é a grilagem de terras (falsificação de títulos de propriedade rural). A colonização também criou um cenário de intensos conflitos fundiários.
“Não existe pedaço da Amazônia em que alguém não diga que é dono. Sempre há uma cerca ou um pistoleiro”, afirma o professor de Direito Ambiental da Universidade Federal do Pará, Girolamo Treccani. O aparente exagero na afirmação do professor na verdade faz um alerta para a falta de informações sobre a ocupação do território amazônico. Questionada pela reportagem, a assessoria de comunicação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não forneceu nenhum levantamento sobre as propriedades rurais na região amazônica, sua extensão e quem são seus proprietários. O órgão, sucateado por sucessivos governos, padece da falta de pessoal e de recursos para desenvolver suas atividades - e mesmo de corrupção por parte de alguns de seus funcionários.
Jogo de interesses
“O debate sobre a internacionalização da Amazônia está tingido de fatores ideológicos, suspeitas de uma conspiração internacional, quando, na verdade, a internacionalização já acontece a passos largos. Todo o setor de mineração já está nas mãos de transnacionais”, destaca o integrante do Greenpeace, Paulo Adário.
Ele afirma, no entanto, que a ausência de informações sobre a presença estrangeira na Amazônia alimenta o “fantasma” da perda de território. “Há um descontrole total sobre a propriedade da terra. Então, esse receio também tem uma base real. O imperialismo não morreu.”
Segundo ele, apesar de o movimento ambientalista também se dividir sobre o tema, o argumento da soberania nacional é evocado principalmente pelos setores que destroem a floresta. “Toda vez que se vai demarcar uma terra indígena, as empresas fazem alarde e dizem que isso atenta contra a soberania nacional. Eles usam a questão ambiental ou das minorias para esconder a sua prática predatória.”
A polêmica sobre a internacionalização também interessa aos ultra-nacionalistas e militares paranóicos de plantão que ficam procurando indícios para justificar atos ditatoriais – principalmente no que diz respeito a implantação de leis severas nas fronteiras. Quem tem sofrido principalmente com isso são as populações indígenas, que levam décadas até verem suas terras serem reconhecidas.
A questão de fundo para a Amazônia estaria, portanto, em compromissos reais com a proteção da floresta e o ordenamento da ocupação privada na região. Na avaliação do professor Girolamo, é preciso tomar as rédeas da propriedade de terras na Amazônia. “A situação fundiária na região é caótica. A atuação dos governos federal e estaduais deixa muito a desejar. Estima-se que 100 milhões de hectares sejam grilados”, diz. “A legislação brasileira criou um sistema favorável à proteção, mas não se pode fiscalizar com meia dúzia de agentes. O corpo de fiscalização é insuficiente.”
O representante do MMA também admite que a grilagem de terras é o nó crítico da destruição da Amazônia. “Existem ações do Incra para combater isso. O próprio Sistema Brasileiro de Florestas também prevê ações nesse sentido.” Articulado com a política ambiental, o Ministério de Desenvolvimento Agrário definiu que a política de regularização fundiária, que concede direito de uso e posse da terra, deveria começar pela região Norte do país, principalmente pelos estados de Roraima, Pará e Amazonas. A ação estava prevista desde 2003, mas o governo afirma que apenas este ano o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) obteve estrutura para iniciar o trabalho.
Controle social
Professor Girolamo defende, contudo, que o levantamento da posse da terra deve ser combinado com a divulgação dessas informações para a sociedade. “É preciso existir o controle da população para garantir a proteção das florestas -sejam donos das terras brasileiros ou estrangeiros”. Ele reclama da falta de transparência do levantamento fundiário feito recentemente no entorno da rodovia Cuiabá-Santarém (a ação fez parte do plano de “BR-163 Sustentável” para o asfaltamento da rodovia).
“Na região de Anapu (PA), onde foi assassinada a missionária Dorothy Stang, o Exército e o Incra levantaram entre 5 e 6 mil imóveis rurais. Mas isso não está público. Essas áreas estão na mão de quem? Em pleno século 21 não se pode conviver com essa falta de informação. O melhor fiscal é a população. Por que o cadastro do Incra não está disponível para todo cidadão consultar?”
O professor cita ainda um exemplo das irregularidades praticadas por proprietários na região: “Existem denúncias de propriedades com 10 mil ou 15 mil hectares na BR-163. E o Exército quando fez o levantamento descobriu uma série de títulos com imóveis do tamanho de 2490 hectares. Por que esse número mágico? Porque para obter concessão de terra com mais de 2500 hectares é preciso aprovação do Congresso Nacional. Se passar de 2500, eles vão ter que provar a origem dessa terra”. Um grileiro com 15 mil hectares divide a terra em lotes de 2490 e coloca em nome da mulher, do sogro, primos, cunhados.
No papel, a legislação brasileira é considerada bastante avançada para a questão ambiental. A lei estabelece algumas restrições à concessão e venda de terras na região amazônica. Está na Constituição, por exemplo, que para conceder terras públicas com mais de 2500 hectares é preciso obter aprovação do Congresso Nacional, exceto se área for destinada à reforma agrária. Em caso de venda de terras privadas em que um dos participantes for estrangeiro, a área comercializada não poderá ser maior do que 100 módulos fiscais (unidade calculada pelo Incra para cada município). Nos estados do Norte, cada módulo fiscal tem aproximadamente 100 hectares. Se ultrapassar esse limite, a venda também deverá ser autorizada pelo Congresso Nacional.
Na prática, porém, falsos títulos de propriedades rurais e a superexploração do meio ambiente são os elementos que marcaram a história dessa região do país. Apesar de estar protegida legalmente, a fiscalização insuficiente e a presença seletiva do Estado não têm impedido a devastação da floresta amazônica.
"Seletiva" porque o Estado brasileiro está presente nos financiamentos de empreendimentos agropecuários dessa região através de suas agências de desenvolvimento, como pode ser visto nas placas colocadas nas portas de fazendas. O Estado se faz presente para a elite econômica e política, mas não para as populações tradicionais e pequenos agricultores.
Para o integrante do Greenpeace, a polêmica suscitada pelo governo inglês gerou um aspecto positivo: abriu novo espaço na imprensa brasileira para o debate ambiental. “Nessas eleições, ninguém debateu ou expôs seu programa para o meio ambiente. Quem sabe os candidatos a presidente possam dizer agora o que pretendem fazer sobre o tema.”
http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=753
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