César Bórgia, filho de um papa corrupto e irmão da famigerada envenenadora de maridos e amantes, Lucrécia Bórgia, jogou mal suas cartas quando o pai morreu, perdendo tudo o que tinha conquistado a custo de sangue e intrigas. Como "príncipe novo", ele fracassou. Como personagem histórica, não fosse Maquiavel, César Bórgia teria passado à história como mais um príncipe aventureiro italiano do Renascimento, culto e bem educado, embora cruel e, dizia-se, incestuoso, alguém que seria certamente lembrado com menos horror do que o francês Gilles de Rais, mas que estaria longe de ser algum tipo de herói. O Príncipe salvou o fracassado condottiere italiano desse destino, tornando suas aventuras e atos em exemplos do que deve e do que não deve ser feito. Os elogios e críticas de Maquiavel à César Bórgia (e a outras figuras assemelhadas) valeram ao pensador florentino um belo lugar no inferno, como se sabe, mas salvaram o Duque Valentino não do esquecimento completo, mas de ser lembrado apenas como um jogador a mais, num jogo sujo e mortal? Mortal? Perigoso, sem dúvida, mas pelo menos para o Duque, as consequências de sua queda não foram o que se poderia esperar: como o próprio livro de Maquiavel mostra, depois da queda César Bórgia se dedicou ao passatempo predileto de ex-políticos e de ex-guerreiros, o de ficar conversando, com que se dispuser a ouvir, sobre o velhos bons tempos. César Bórgia foi bem tratado pelos seus inimigos, triunfantes, sim, mas não cruéis: traído por um nobre a quem confiara sua segurança, foi preso, ameaçado e, finalmente, deixado fugir, manobra que se conhece bem no Brasil. Teve de sair das terras italianas, indo para Navarra, Espanha, onde morreu pouco tempo depois numa "batalha" que mal passou de uma briga de rua, ganhando com sua morte de espada na mão o direito de ser considerado um herói navarrês, uma estátua tendo sido erigida em sua homenagem.
Aos casos contados por Maquiavel podem ser contrapostos outros, o que é a fraqueza de se pensar em termos de exemplos. Sem dúvida, tendo em vista os objetivos que se pôs, em termos políticos o Duque Valentino "perdeu tudo", exceto a honra e a vida, detalhes com que Maquiavel não se ocupou. Mas não será possível se ler na biografia de César Bórgia uma lição não tão estritamente maquiavélica? Não seria a própria visão de Maquiavel, por assim dizer, excessivamente maquiavélica? Maquiavel, tido como o introdutor de uma nova visão da política, consegue esse feito ao custo de deixar muita coisa de lado, ficando apenas com o que para ele é o essencial (talvez, o Poder). Para um príncipe italiano seria a honra, a palavra dada (aos iguais) algo tão sem importância assim? Seria a fama apenas destinada aos grandes vencedores? Maquiavel, que não era nobre, podia (e na certa tinha) não ter uma boa opinião sobre as virtudes que as pessoas nobres deveriam portar, mas devemos sempre seguir Maquiavel nesta lição?
Já os exemplos citados nO Príncipe clamam por contra-exemplos. Para cada líder, que seguindo as lições do diplomata e burocrata florentino, exterminou seus adversários juntamente com suas respectivas famílias, houve outros que perdoaram (embora talvez não tivessem se esquecido), e nem por isso se deram mal. Uma ciência com contra-exemplos é algo meio difícil de admitir, na ciência o que se tem é exceções à regra ou contra-provas que diminuem ou derrubam a prova. Já, se a política for arte e não ciência, pode ser outro o caso. Só que, se for assim, os exemplos nada provariam. Serviriam sim para criar uma tradição, ou talvez um hábito, mas nunca levariam a nenhuma certeza fora de um quadro previamente dado, portanto tradicional ou habitual. Exemplos criam e mantém tradições, modos de agir e pensar que passam a ser visto como, se não naturais, pelo menos como normais.
Não é possível, portanto, se desprovar Maquiavel. Até porque os exemplos que dá são todos maquiavélicos, e outros exemplos, outros casos, outras histórias, podem ser encaixados num contexto maquiavélico. Afinal, é possível, pela Fortuna, se fazer o contrário do que "deveria" ser feito, e ainda se dar bem. Acontece. O difícil é quebrar uma tradição, um jeito de agir, que pode ser até novo, mas que, percebido como um "tem que ser assim", torna-se temporalmente eterno. Talvez as lições de Maquiavel aos príncipes novos possa valer para a maioria deles. Pode ser assim, mas é possível pensar que essas mesmas lições criaram, ajudaram a criar, uma tradição, e das mais sanguinárias, de como agir quando se é um príncipe novo, que talvez fosse um dos objetivos mesmo de Maquiavel. Sendo os exemplos atemporais, servem para qualquer hora e lugar, mas de acordo com as circunstâncias, como acontece com os ditames do bom-senso. E se são vistos como imperativos científicos, irresistíveis? Aí então as circunstâncias, o seu peso, se enfraquecem, estiolam, e um outro modo de agir é imposto. Há uma aposta na certeza de que só pode ser assim, que só há um jeito, que há algo necessário a ser feito. Praticamente, não há escolhas: ou se faz assim, ou se perde tudo. Se essa postura piorou ou não o comportamento político é algo que pode ser debatido, mas que ela piora a perspectiva política, não há dúvidas. Passa-se a esperar quase sempre o pior, passa-se a imaginar que os adversários na certa cometerão todos os crimes do calendário, o que já de início justifica ainda antes todos os atos que se cometerão contra eles.
O hábito traz consigo uma moral, que pode ser ruim, agressiva, mas que está lá. Já a ciência tem bem outra conotação, senão de imoralidade, pelo menos de amoralidade. Nela sim o sucesso é a única coisa que conta. Quando se está no hábito, no costume, vale às vezes fracassar, mas mantendo a linha. O que talvez tenha sido a atitude do próprio César Bórgia, que acabou sendo menosprezado por Maquiavel não só por fracassar, mas também pelo modo como falava a respeito de sua desventura. Já fracassar, errar, por não se ter conseguido entender direito e ter aplicado corretamente as leis científicas da História, parece não deixar não só nenhum consolo, mas ainda por cima não ensinar nada. O fracasso aqui é pura perda, nada acrescentando. Por mais que possa ser hipócrita dizer-se que, em troca de um crime e de uma coroa se fará uma cruzada contra os infiéis, há algo nessa promessa que é moral, enquanto que afirmar que o extermínio de uma família de ex-governantes era algo historicamente necessário não o é.
Nem a tradição nem uma visão científica impedem horrores, golpes, massacres, guerras de extermínio. Não é disso que se trata. Os perigos da vida política, dos confrontos, não são abolidos nem com bons costumes nem com a aplicação estrita de padrões de cunho científico. Todas as regras podem ser quebradas, todos os interditos podem deixar de valer num determinado momento. O que acontece depois é que pode ser diferente. E não apenas pelo que foi de fato feito, nem pelo modo como o foi, mas sim pelo como o que aconteceu é encaixado dentro do que são as normas. Trata-se aqui dos maiores perigos trazidos pela política, o risco de morte, de exílio, de perda total, os preços do fracasso que Maquiavel não deixa que nenhum leitor esqueça. Esses riscos podem ser os mesmos em qualquer regime, em qualquer época? Seria tolo se apostar que tal ou tal fato, ocorrido antes ou em outro lugar, é impossível aqui. Assassinatos, principalmente, ocorrem sob qualquer regime e são a ameaça constante a qualquer governante. O que ocorre depois de um deles é que vai derivar mais da tradição, dos usos e costumes, do que do ato propriamente dito.
Há sempre uma tendência em maximizar as perdas, em tornar o já ruim ainda pior. Em transformar um assassinato cometido por um só em uma vasta conspiração. É uma forma de se instituir o novo, um outro modo de ver e que, claro, realça outras tradições, outros usos, talvez imaginários, mas tidos como os realmente verdadeiros. Não é uma postura que os exemplos desaprovem completamente: afinal, conspirações ocorrem, e algumas até mesmo acabam dando certo. O que importa, aqui, é como essa postura mostra uma desconfiança do político que chega ao próprio âmago deste. E o repúdio do político acaba tendo também consequências das mais maquiavélicas. O próprio jogo da política é visto como não tendo regras, o que implica que os preços a pagar são de natureza a mais pessoal. Nada menos que o extermínio satisfaz. O preço do pecado é a morte, diz o livro da Sabedoria. Seria o preço do fracasso político o mesmo? De alguma forma, pós-Maquiavel, e contrário a vários exemplos atuais e passados, chega a parecer que essa é a única forma de se ver a coisa toda. Pelo menos um exemplo toca a nós, brasileiros: a queda de Collor não parece ter satisfeito a uma razoável parcela da população. Como se ser alijado do poder não fosse suficiente, como se tivesse ficado faltando algo (e esse algo não seria uma mera pena de cadeia). No entanto, mais do que César Bórgia, Collor de Mello perdeu tudo, até a honra. Sequer conseguiu voltar a um cargo, isso no próprio estado onde sua família é uma das mandantes. Mas está vivo, e rico. Algo deveria ser feito a respeito....
É só isso? Talvez haja outra maneira, talvez as indicações de Maquiavel pudessem ser repudiadas, ou então qualificadas. Deve-se fazer o mal de uma vez e o bem aos poucos? Deve o governante possuir a astúcia de uma raposa e a ferocidade de um leão? É melhor mexer com o sangue de uma família do que com sua propriedade? Há casos e casos. Juntando todos num só rol, extrair-se-ia deles uma ciência da política? Como ficariam então os contra-exemplos? Não se trata, filosoficamente, de um exemplo de indução. Há teorias de leitura de exemplos, isto é, o que faz um exemplo ser um exemplo. Mesmo assim, mal não faz contar dois causos, singularmente ligados, e interessantes. Se podem ser catalogados como contra-exemplos cabe ao leitor julgar. Ei-los:
O mais tardio ocorreu na queda de Constantinopla diante das forças turcas lideradas pelo sultão Maomé II. O Imperador dos Romanos sumiu no meio da luta, seu corpo nunca tendo sido encontrado. O vitorioso Sultão aceitou a rendição da elite governante de Constantinopla, mandou logo matar um alto funcionário e seus filhos, mas deixou toda a família dos Paleólogos viva. Os irmãos do desaparecido imperador Constantino tiveram cargos sob o governo de Maomé II durante décadas, até que, finalmente (como diria Maquiavel) o já velho sultão promoveu uma razzia contra toda a família dos Paleólogos ligadas ao sumido imperador. Quem não fugiu, foi morto. Que tal perseguição tenha ocorrido não é espantoso, o interessante é que tenha demorado, e bastante. Maomé II não teve o privilégio de ler Maquiavel, o que talvez tenha contribuído para a sua inação táo prolongada. Ocorre que as leis de sucessão turcas eram um tanto quanto violentas, como se sabe, e um sultão só o era realmente depois que tivesse liquidado ou anulado todos os outros pretendentes ao trono. Maomé II não precisava de uma lista de exemplos para saber como era sangrento o caminho para o poder. E só precisava lembrar o que aconteceu com seu pai, o sultão Berjazet, capturado, posto numa gaiola e levado embora pelos mongóis, para que o destino dos perdedores lhe viesse a mente com toda a clareza. E, no entanto...Porquê? Porque a contenção? Simples, Constantinopla foi considerada como tendo sido uma cidade que se rendeu, e não uma que tenha sido conquistada. A diferença legal para os turcos (e outros povos) era enorme, afetando a vida dos moradores das cidades tomadas. Rendida, aos habitantes de Constantinopla era devido misericórdia, a mesma que Maomé II teve pela, ou escolheu dar à, família (grande) do seu antigo inimigo. Se a lição não está sendo bem compreendida, pode-se tentar explicá-la melhor: o sultão turco Maomé II, o conquistador de Constantinopla, durante anos teve como governadores de partes de seu império pessoas que, além de antigos inimigos de guerra, eram herdeiras legítimas do trono que ele, Maomé II, tinha tomado à força. Parece a receita do insucesso, mas não foi assim. Se sempre se pode argumentar que no final das contas o sultão teve de agir maquiavelicamente, acabando por tentar extirpar a estirpe dos Paleólogos, não pode restar, no entanto, dúvida que essa tentativa ocorreu tardiamente, muito depois do que alguém instruído nas artes dO Príncipe acharia razoável.
O outro caso envolveu o último imperador romano do ocidente, Rômulo Augústulo. O rei bárbaro Odroaco, nunca conhecido pela sua gentileza e fino trato, ao conquistar a Itália, simplesmente concedeu uma aposentadoria ao último dos Augustos, que passou o resto da vida numa propriedade rural, onde se dedicou a cuidar de galinhas, sem ser incomodado. Um destino à lá Gorbachov, bem no início oficial da Idade Média. De que vale esse exemplo? Ou o anterior? Talvez como amostra de que nenhum exemplo valha nada, mas muito mais talvez como advertência de que não é preciso deliberadamente piorar o que já é por natureza perigosamente instável. Nada mais.
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