Luís Tomé *
Na linguagem estratégica, a simetria é entendida como o combate com capacidades mais ou menos semelhantes, e recorrendo a processos idênticos – pode dizer-se que é o paradigma das guerras e dos conflitos “tradicionais”. A dissimetria é a procura por um dos antagonistas de uma superioridade qualitativa e/ou quantitativa bastante acentuada face ao adversário; é uma vontade clara de implementar uma estratégia de conjunto que procura impor a superioridade, em termos de meios para atingir os fins. A assimetria reside na oposição de dois adversários que dispõem de meios e capacidades totalmente desequilibrados, sendo que o mais fraco tem de recorrer a outros processos, expondo a sua desigualdade, para explorar todas as vulnerabilidades do adversário, a fim de poder ser contundente. Em bom rigor, a assimetria tem as suas origens nos conflitos da Antiguidade, de que o episódio bíblico de David e Golias é a melhor ilustração.
Quando um adversário escolhe, voluntariamente, contornar aquela disparidade usando meios assimétricos, a superioridade tecnológica e de capacidades, por muito pronunciadas ambas que sejam, já não permitem uma vantagem decisiva. A assimetria consiste em recusar as regras de combate impostas pelo adversário mais poderoso, tornando as suas próprias operações totalmente imprevisíveis, a partir de capacidades e de meios bastante mais reduzidos. Esta estratégia do “fraco ao forte” utiliza meios tecnicamente simples, diferentes e inovadores ao nível dos instrumentos, do método e dos alvos, visando as falhas do adversário.
A “invisibilidade” e a imprevisibilidade são as principais armas da guerra assimétrica, e o seu efeito é múltiplo: impacto mediático, efeito psicológico, consequências económicas, perturbação social, abalo da determinação política. A guerra assimétrica é uma categoria que simboliza um novo paradigma de conflito, múltiplo, difuso, omnipresente e imprevisível, e que requer novas estratégias para a enfrentar. É por isso que a nova concepção é proveniente, não do mais fraco, mas do mais poderoso, na sua pretensão de contrariar os perversos e temíveis processos utilizados pelos novos actores assimétricos.
A dissimetria dos EUA
O êxito incontestável das campanhas militares lideradas pelos Estados Unidos nas Guerras do Golfo, da Bósnia, do Kosovo, do Afeganistão e do Iraque demonstram a invencibilidade das forças armadas americanas contra antagonistas convencionais. Mas os seus adversários podem, em contrapartida, procurar os meios para evitar um confronto frontal e simétrico, por forma a alcançar os seus objectivos. Os americanos já sentiram anteriormente as dificuldades de travar um conflito assimétrico, por exemplo, no Vietname, no Líbano ou na Somália, e voltam hoje a senti-lo no Afeganistão, no Iraque e na guerra contra o terrorismo. De facto, para os Estados Unidos é muito mais fácil combater e vencer forças militares regulares estatais do que enfrentar uma guerra assimétrica. Ora, quanto mais pronunciada for a dissimetria ou a desigualdade – como acontece actualmente a favor dos EUA – maior é a tendência para que os seus adversários os confrontem assimetricamente. Dissimétricos por essência, os Estados Unidos vêm tentando impor muitos dos seus objectivos por uma esmagadora supremacia. Neste sentido, o recrudescimento da assimetria e o novo paradigma da guerra assimétrica pode ser o grande reverso dessa dissimetria. Este é o grande paradoxo actual: apesar de gozarem de uma supremacia que nunca antes experimentaram (dissimetria), os Estados Unidos estão mais vulneráveis do que nunca, em virtude do novo paradigma da guerra assimétrica. A relação dissimetria-assimetria é evidente.
Num texto na Time, algumas semanas depois do 11 de Setembro, Gary Hart sintetizou bem a nova ameaça: “A América não está preparada,nem defensiva nem ofensivamente, para osconflitos do século XXI. Somos a potência militar mais forte do mundo, mas no século errado. Os conflitos opõem agora civis contra civis. Os perpetradores nãopertencem a um Estado, não usam fardae a guerra, para eles, não tem regras (...)Outros ataques se seguirão”. Além disso, a evolução de uma guerra convencional para uma guerra assimétrica impede que uma vitória militar clássica signifique a obtenção dos objectivos políticos que a levaram a eclodir – como comprovam as dificuldades dos EUA no Afeganistão e no Iraque, depois da rápida deposição dos regimes Talibã e de Saddam Hussein, durante as denominadas fases de estabilização.
Guerra Assimétrica
A noção de guerra assimétrica encontra na História múltiplos exemplos das suas aplicações. No seu tratado militar “A Arteda Guerra”, há cerca de dois mil e quinhentos anos, já o chinês Sun Tzu preconizava a assimetria como conceito estratégico e, em muitas ocasiões, os Impérios e as potências enfrentaram esse dilema. Mais recentemente, podemos recordar as imensas dificuldades encontradas por várias potências coloniais em enfrentar eficazmente alguns movimentos de libertação, ainda que houvesse uma significativa disparidade de meios. Podemos citar, igualmente, os muitos problemas que experimentaram as duas super potências durante a Guerra Fria perante adversários dotados de meios substancialmente inferiores – os EUA no Vietname, nos anos 60 e 70, e a URSS no Afeganistão, na década de 80, demonstram-no perfeitamente.
Exemplos de conflitualidade assimétrica poderemos ainda encontrar naqueles inúmeros casos em que certos Estados se confrontaram ou confrontam no seu seio com organizações terroristas, com grupos guerrilheiros ou com associações criminosas e de malfeitores. Finalmente, podemos, ainda, invocar, na actualidade, as inúmeras dificuldades experimentadas por grandes potências, como Israel e a Índia, no confronto com adversários assimétricos, ou a Rússia na Tchechénia, ou os Estados Unidos na Somália, primeiro, e depois, também no Afeganistão e no Iraque. Utilizando meios e processos relativamente simples, a guerra assimétrica permite, a múltiplos actores, não dispondo senão de meios muito limitados, ter uma capacidade de destruição considerável sobre “o mais forte”.
Isso supõe, ao mesmo tempo, a utilização de meios não previstos para essa finalidade (veículos civis, aviões comerciais ou comboios) e, sobretudo, insuspeitáveis (cidadãos aparentemente comuns), a utilização de capacidades perante as quais os meios de defesa tradicionais não se encontram totalmente adaptados (armas químicas, biobacteriológicas e nucleares, explosivos, desvio de aeronaves), a utilização de métodos que recusem a guerra convencional (terrorismo, guerrilha), a escolha de alvos e locais de combate imprevisíveis e mais dificilmente controláveis (lugares públicos, redes de transporte e de abastecimento) e o efeito surpresa – sendo esta característica a mais importante. A guerra assimétrica inverte muita da equação estratégica tradicional: os que dispõem de uma grande superioridade de meios não só não podem recorrer a uma parte substancial das suas capacidades (por exemplo, armas nucleares) como muitas delas são pouco eficazes ou mesmo ineficazes no combate contra adversários assimétricos.
Por seu lado, aqueles que não dispõem de capacidades equiparadas aos seus adversários conseguem, por via de processos assimétricos, obter resultados desmesurados. Assim, a assimetria existe tanto em função dos meios em confronto (desequilibrados) como dos resultados obtidos (desproporcionados). Face à superioridade militar do Ocidente e, em particular, dos EUA, a assimetria é o único meio de contestar, conter ou responder às carências capacitárias. Ela substitui-se, assim, aos meios de guerra convencionais, e pode situar-se em todos os níveis de um conflito (táctico, operacional ou estratégico), com objectivos essencialmente estratégicos. Parafraseando Sophia Clèment-Noguier, “Aguerra assimétrica marca o fim da ‘guerraclássica’, fundada no relativo equilíbriode forças entre dois pólos e na dissuasãonuclear no sentido estrito”.
Actores assimétricos
Os actores assimétricos podem ser entidades estatais ou grupos não estatais, e estes tanto podem ser independentes de Estados como podem ter laços, ser apoiados ou mesmo ser instrumentos ao serviço dos objectivos políticos e das estratégias de certos governos, no quadro da sua política regional e internacional. Actualmente, a tendência parece ser a da proliferação dos actores não estatais, em particular as redes terroristas, largamente independentes dos Estados. Estes têm novas motivações – fundamentalismo islâmico, ódio aos “infiéis”, ao Ocidente (cruzados e judeus) e aos “muçulmanos não islâmicos” – e rejeitam as regras éticas e previsíveis, esbatendo a fronteira entre motivação ideológico-política e associação criminal, nomeadamente, pela confusão de métodos entre o crime organizado, o terrorismo e a guerrilha.
Neste sentido, o terrorismo é o método assimétrico por excelência, e a Al Qaeda o actor assimétrico mais temido e mais adaptado a um mundo cada vez mais globalizado. Os actores assimétricos podem atingir o território nacional de um Estado, ou os seus cidadãos, forças e interesses no estrangeiro, ou os interesses dos seus aliados; eles podem atingir estruturas militares ou civis. Visam, sobretudo, as opiniões públicas e a vontade política dos Estados, aspecto em que as democracias estão particularmente vulneráveis pela habituação a uma certa tranquilidade com a sua segurança. Os actores assimétricos alteram totalmente os postulados tradicionais em matéria de segurança, a tal ponto que podemos considerar que a guerra assimétrica tem por efeito reforçar o sentimento geral de insegurança, ele próprio desproporcionado. O aspecto psicológico é essencial – a vulnerabilidade e a insegurança são o efeito pretendido. Por outro lado, face às potências que não podem ultrapassar um vasto conjunto de regras morais e jurídicas e os compromissos internacionais que caucionaram, os actores assimétricos beneficiam de uma grande margem de acção.
O que não é permitido às democracias é muitas vezes tolerado a certas ditaduras; o que não podem fazer as forças armadas e os serviços de segurança e de intelligence estatais, fazem os grupos terroristas sem quaisquer constrangimentos éticos, morais ou jurídicos. A disparidade do que está em jogo e dos objectivos a atingir é um elemento suplementar favorável aos actores assimétricos. O Estado visado tem sempre algo de vital a defender: território, população, economia, modo de vida, estabilidade social, enfim, segurança e integridade de todos os seus interesses. Um actor assimétrico estatal não só não tem o mesmo tipo de constrangimentos éticos, morais ou jurídicos como pode não equacionar da mesma forma a salvaguarda da sua população ou dos seus direitos – quando muito, os dirigentes equacionam a sua própria situação.
O actor assimétrico não estatal, seja um grupo terrorista ou um “senhor da guerra”, não tem bases territoriais, nem forças ou infra-estruturas que possam ser desmanteladas no sentido clássico, mas dispõem de redes subterrâneas muitas vezes não controladas por uma autoridade central. O novo e grave risco proveniente da guerra assimétrica resulta do facto de os actores assimétricos procurarem sempre obter mais e melhores capacidades, quer para conseguir dotar-se de alguns meios semelhantes ao adversário poderoso, quer para alcançar resultados mais consideráveis. Muito claramente, o maior risco reside na possibilidade de os actores assimétricos possuírem armas de destruição massiva: nesse caso, os “fracos”, sejam actores estatais ou não estatais, estariam dotados dos meios mais poderosos, com consequências potencialmente catastróficas.
ASSIMETRIA E ADM – RELAÇÃO PARADOXAL E PERIGOSA
A relação entre a assimetria e as armas de destruição massiva, em particular as armas nucleares, é profundamente perturbadora e perigosa mas é, simultaneamente, paradoxal. Tradicionalmente, as armas nucleares são, por excelência, as armas dos “mais fortes”, simbolizam a potência – a arma nuclear é, assim, um exclusivo dos Estados, e apenas de alguns, os mais poderosos. Por outro lado, as armas nucleares pertencem, nas doutrinas estratégicas clássicas, ou ao registo da simetria, no sentido da paridade ou do equilíbrio estratégico entre dois pólos, advindo daí a dissuasão nuclear, ou então ao registo da dissimetria, com o acréscimo de diferencial de poder como objectivo. É verdade que já durante a Guerra Fria se desenvolvera a noção de “dissuasão do fraco ao forte” relacionada precisamente com a assimetria, em que se pretendia dissuadir a agressão de um adversário mais poderoso pela capacidade suficiente para lhe infligir danos significativos com apenas algumas armas nucleares.
Ainda assim, estávamos no domínio da relação convencional entre Estados ou coligações e da tradicional equação custos-benefícios. Entretanto, muitos dados se alteraram. A essência da assimetria reside na desestabilização de uma superioridade convencional incontestada pelo recurso a meios atípicos, não convencionais, sendo que as armas nucleares não correspondem, tradicionalmente, a estes critérios. Nesta perspectiva, parece existir uma incompatibilidade entre actores assimétricos e armas nucleares, uma vez que nos deparamos com um grande paradoxo: o de estabelecer laços entre actores assimétricos, “fracos” por definição, na posse do símbolo da potência por excelência, a arma nuclear. O facto é que, na actualidade, um dos maiores desafios da assimetria reside na proliferação das armas de destruição massiva, incluindo, e particularmente, as armas nucleares. A possibilidade de actores assimétricos disporem destas armas é extraordinariamente perigosa porque, entre outras coisas, muitos destes actores, e em particular os grupos terroristas, são de comprovada “irracionalidade” no uso dos meios ao seu dispor, de difícil identificação e de impossível localização geográfica – o que torna caduco parte do princípio da dissuasão e mais delicados os complexos mecanismos de controle de regulação e de transferências de matérias físseis e de tecnologias sensíveis. Além disso, a posse por actores assimétricos de armas nucleares desestabilizaria evidentemente o mais alto ponto dos “fortes” que, até agora, não tinham verdadeiramente equacionado o uso da arma nuclear senão “entre fortes”, isto é, o nuclear como apanágio do Estado-potência, como uma força ao serviço da política e da “grande estratégia”, no sentido clausewitziano.
A sequência deste enorme paradoxo é deveras preocupante: a fim de conservar as condições necessárias para que um actor possa ser, simultaneamente, assimétrico e nuclear, é necessário que a sua posse e concepção do nuclear seja totalmente atípica e não convencional. Ou seja, por exemplo, e na pior das hipóteses, que não veja a arma nuclear como algo cuja utilização é de evitar a todo o custo no conflito, mas antes como um excelente meio, o melhor, para provocar no adversário mais forte danos consideráveis – o que significa, tão só, pretender essa capacidade para a utilizar logo que possa, não para dissuadir (embora nos casos dos actores estatais possa permanecer a concepção clássica de dissuasão). O cenário alternativo não deixa de ser igualmente preocupante – o da chantagem vil dos actores assimétricos sobre os Estados-potência ou sobre a comunidade internacional no seu conjunto. A relação entre assimetria e ADM é paradoxal mas existe e pode ocorrer, numa associação verdadeiramente aterradora.
* Luís Tomé
Licenciado em Relações Internacionais pela UAL. Mestre em Estratégia pelo ISCSP. Doutorando em Relações Internacionais na Universidade de Coimbra. Docente na UAL. Membro do Conselho Directivo do Observatório de Relações Exteriores da UAL.
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