quarta-feira, 30 de julho de 2008

O incêndio de Moscou, 1812

Durante cinco dias seguidos a cidade de Moscou, a antiga capital do Império Russo-Ortodoxo, ardeu violentamente. Ocupada pelo Grand Armée de Napoleão Bonaparte em 14 de setembro de 1812, a cidadela dos czares negou-se se render aos invasores. Quando as chamas finalmente cederam, no dia 20 de setembro, tudo era um imenso entulho de madeira queimada e pedra calcinada. Tratou-se de uma tragédia tão grande como a do terremoto de Lisboa de 1755. Milhares de soldados franceses que a ocuparam, uns cem mil deles, tiveram que acampar nas ruas e nas praças ao desabrigo do tempo. Aquilo foi, porém, apenas um dramático aviso do que os invasores iriam sofrer nos meses seguintes quando foram forçados a bater retirada, em pleno inverno, pela vastidão das terras russas.

A Moscou da fé e dos czares

Desde 1450, Moscou fora o epicentro do expansionismo russo, que conquistara deste então imensas regiões à Oeste, à Leste e ao Sul da Rússia atual, agregando-as ao império dos czares. Coube a Pedro o Grande, a partir da fundação de São Petersburgo, situada na embocadura do rio Neva, nas proximidades do mar Báltico, inaugurada em 1703, transferir o trono de Moscou para lá. Porém, tal translado nunca satisfez a população nativa que via na nova capital o predomínio da influência de idéias e de culturas estranhas à verdadeira Rússia.

Moscou não. Sede do Patriarcado da Igreja Russo-Ortodoxo e do Santo Sínodo, com suas incontáveis igrejas e catedrais de cúpulas douradas, povoadas com relíquias sagradas e com ícones de tradição bizantina, centro de peregrinação que se orgulhava em ser a “Quarta Roma” (a herdeira de Jerusalém, Roma e Constantinopla), cidade santa da cristandade oriental, ela era a verdadeira e única metrópole que continuava morando no coração e no sentimento do povo russo. Afinal, lá estava também o Kremlin, a impressionante fortaleza-imperial que dominava a praça Vermelha, no plano central de Moscou, e inquestionável símbolo do domínio autocrático dos czares. Edifício que inspirava temor e respeito em milhares de súditos do grande império euro-asiático.

Por isso mesmo, pelo fantástico imaginário que ela exercia sobre as populações russas como a mais autêntica representação de fé e de poder que conheciam, é que Napoleão, quando invadiu a Rússia em 23 de junho de 1812, dirigiu o grosso das suas divisões diretamente para lá. “Moscou”, disse ele fascinado, “la capitale asiatique de ce grand empire; la ville sacrée des peuples d´Alexandre; Moscou, avec ses innombrables églises en forme de pagodes chinoises” (Moscou, a capital asiática deste grande império: a cidade sagrada do povo de Alexandre; Moscou com suas inúmeras igrejas em forma de pagode chinês)


A espera da rendição de Moscou

A campanha da Rússia até ali fora formidável. Napoleão conseguira o feito de mobilizar mais de 600 mil homens vindos de toda Europa para acompanhá-lo na aventura. Apesar da resistência aumentar conforme os franceses adentravam no território, ninguém no exército do czar era páreo para enfrentar os 220 mil soldados que Napoleão selecionara para serem o eixo da ofensiva sobre o coração da Rússia, nem o general Bagration nem o então comandante-supremo Barclay de Tolly. A espetacular batalha nas proximidades de Moscou, que os russos chamaram de batalha de Borodino, uma das maiores da suas história, travada em 7 de setembro de 1812, - na qual, em dez horas de canhoneios e metralhas, os franceses perderam 20 generais e 33 mil homens entre mortos e feridos - não conseguira deter o invasor nem fazê-lo bater em retirada. Então foi a vez do recém nomeado generalíssimo Kutuzov, um oficial veterano que enfrentara Napoleão em diversas ocasiões, recuando de Borodino, convencer o Conselho de Guerra, reunido numa izbá na colina de Poklonaia, a abandonar a cidade e salvar o exército. Que sacrificassem Moscou ao invasor por que - garantiu ele depois ao czar - “Graças a Deus, será a sua última vitória”.

Napoleão, uma semana depois, acampou no mesmo lugar tendo à vista as cúpulas douradas das inúmeras igrejas da imensa cidade que brilhavam como se fossem pequenos sóis no horizonte. Esperou ali , como disse aos seus generais, a chegada da “delegação dos boiardos”, os representantes da nobreza russa que deveriam vir entregar-lhe as chaves dos portões num ato de rendição. Espera inútil. A vanguarda francesa que penetrara na cidade, a exceção de alguns bandos de criminosos e salteadores que zanzavam bêbados pelas alamedas desertas de gente , não encontrara ninguém “respeitável” autorizado a pedir paz. No dia 15 de setembro, um esquadrão da cavalaria da Guarda Imperial escoltou Napoleão rumo ao Kremlin em meio a ruas fantasmas.

A evacuação da população fora um acontecimento espantoso. Sabendo do resultado da batalha de Borodino, alguns até bem antes, os moscovitas saíram da cidade em massa tal um bando de aves migratórias. Não houve nenhuma preparação. Tal como o povo da cidade de Smolensk fizera um mês antes, só queriam deixar as cinzas e o entulho para o invasor. Mesmo antes do confuso e atabalhoado Conde Rostoptchine, governador militar da região de Moscou, ordenar a evacuação , centenas de habitantes já haviam se encaminhado para a estrada com o que podiam. Os ricos com suas carruagens e caleches, os burgueses à cavalo, e os remediados com seus bois e suas mulas, ou a pé mesmo, deixaram tudo o mais para trás. Em menos de 24 horas a metrópole virara um acampamento fantasma. Ficaram ainda escondidos, os bem pobres, os miseráveis, e os sapadores de Rostoptchine encarregados de por fogo em tudo o que desse e pudessem. O espanto dos franceses foi total, como se verifica pelo testemunho do sargento Bourgogne:

Nós ficamos surpresos quando não vimos ninguém nos arredores...Nós não conseguimos identificar qual o motivo de tão completo silêncio: como uma cidade tão bela e tão perfeita podia estar sombria e deserta! Nós escutávamos apenas os nossos passos.. Naturalmente que nós não falávamos muito.. Primeiro tentamos nos convencer de que os cidadãos estavam dentro das suas casas nos vigiando...não podíamos imaginar que residências tão bonitas e ricas podiam ter sido abandonadas por seus moradores...Aproximadamente uma hora depois de nós termos entrado na cidade o fogo começou... pensamos que alguns dos saqueadores teriam provocado o fogo sem intenção... Nós não pensávamos que os russos pudessem ser tão bárbaros a ponto de porem fogo nas suas propriedades e que pudessem destruir uma das mais belas cidades do mundo
(citado por V.Vereshchangin – Napoleon in Russia)


O incêndio de Moscou e a reação de Napoleão

Quando as chamas atingiram os muros do Kremlin, onde Napoleão recém se instalara, ele ficou aterrado. Tomou aquilo como um mau agouro. Um sinal de dias futuros ainda piores. Impressionou-se com o fato dos russo voluntariamente abrasarem as suas coisas, entregando o seu acervo e a sua história à destruição completa e total. Aquela determinação deles em travar uma guerra sem quartel e sem acordo, bem ao contrário dos habitantes de Viena, de Berlim, de Munique, de Milão, e de tantas outras cidades que ele submetera antes, abalou sua autoconfiança e o seu sangue frio. Leitor voraz da História, Napoleão logo ligou o episódio as guerras dos citas, os terríveis cavaleiros do sul da Rússia que haviam batido o imperador Dario, da Pérsia, em 515 a.C., quando ele pretendera controlar a embocadura do rio Danúbio, e cujas vivas façanhas guerreiras Homero registrara.
Enquanto isso as labaredas devoravam tudo, alimentado-se da madeira com que a maior parte das moradias moscovitas eram construídas. Cumpria-se assim a promessa de Glinka, um personagem de Tolstoi (in Guerra e Paz, Parte IX, cap. XXII) que disse num reunião patriótica que "o inferno deveria ser combatido pelo inferno". Sobraram, pelo menos em pé, muitas das grandes igrejas, alguns mosteiros, e um e outro prédio público mais imponente, desde que erguidos com tijolos e pedras.


A destruição total da cidade

O próprio Kremlin, de onde Napoleão foi retirado as pressas por uma passagem secreta até o rio Moskwa, sendo alojado num palácio fora da cidade, ficou ameaçado. Uma equipe da fiel guarda, conduzida pelo marechal Davout, é quem conseguiu evitar que a antiga fortaleza também fosse engolida pelo fogo que crepitava ao redor da praça Vermelha. Naquela situação, as montarias da guarda imperial viram-se privilegiadas porque, para protegê-las, alojaram-nas nas naves dos prédios religiosos e das catedrais, viradas em cavalariças. Onde antes os sacerdotes distribuíam suas bênçãos e hóstias agora viam-se forragens para os animais, enquanto que as clarinadas ecoavam por onde outrora ouviam-se os sons dos órgãos e dos sinos das igrejas.

Quando o braseiro amainou, amansado por uma providencial tormenta, testemunhou o Conde de Ségur (A derrota de Napoleão na Rússia, Paris, 1825) que milhares de soldados bivaqueavam pelas ruas e praças misturados ao que restara da população civil de Moscou, a gente paupérrima que não teve condições de evadir-se a tempo da cidade e que naquele momento de agonia se irmanava aos invasores na luta para sobreviverem aquele inferno. Uniformes e rostos enegrecidos, cabelos e dragonas chamuscadas, com sede e famintos, a soldadesca andava às tontas em meio daquele colossal entulho ainda em brasas.


A pilhagem e a vingança


Na hora da pilhagem, até remanescentes de tropas russas que deambulavam por lá perdidos dos seus regimentos, juntaram-se aos soldados de Napoleão para esvaziar os palácios e as mansões do que restara de aproveitável. Quanto à real responsabilidade pelo incêndio é interessante recorrer ao testemunho de von Clausewitz, o oficial prussiano conhecido teórico da guerra, que estava presente, atuando na assessoria do exército russo, quando Moscou ardeu: “A confusão que vi nas ruas enquanto a retaguarda [russa] se retirava; o fato de que a fumaça vista pela primeira vez elevando-se das extremidades dos subúrbios onde os cossacos agiam convenceram-me de que o incêndio de Moscou foi resultado da desordem e do hábito dos cossacos de primeiro saquear e depois por fogo em toda as casas antes que o inimigo pudesse utilizá-las [...] Foi um dos acontecimentos mais estranhos da história, que um evento que tanto influenciou o destino da Rússia pudesse ser como um bastardo nascido de um caso de amor ilícito, sem ter um pai que o reconhecesse.” (“A Campanha da Rússia de 1812”, cit. John Keegan _ Uma História da Guerra, SP. 2002, pag.23).
Rendição dos russos? Nem pensar. Acampados ao longe, em meio aos bosques que cercavam Moscou, vendo a enorme e compacta fumaça subindo aos céus em golfadas, com peito contraído pela dor em ter que assistir impotentes a outrora bela cidade virar fumaça, as tropas do general Kutuzov só pensavam numa coisa: vingança! Vingança! O imperador, perplexo com a guerra que os russos propunham, ainda tardou quase um mês em dar a ordem de recuar. Quando o fez, em 19 de outubro de 1812, já era tarde para salvar seus homens, milhares deles, do Manto de Nesso que caiu sobre eles, envenenado pela neve e pelo gelo que os cobriu durante a catastrófica retirada de volta para o Ocidente.

Recomendamos a leitura de:
Clausewitz, Carl von – A Campanha da Rússia de 1812, SP. Martins Fontes
Las Cases, Conde de – Memorial de Napoleón en Santa Helena, México, Fundo de Cultura Económica.
Segur, general Conde de – A derrota de Napoleão na Rússia, RJ., Edições Mundo Latino
Tolstoi, Leão – Guerra e Paz, RJ, Editora Aguilar

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