quarta-feira, 11 de junho de 2008

A Guerra e o poder do Estado para Maquiavel

CAPÍTULO X
COMO SE DEVEM MEDIR AS FORÇAS DE TODOS OS PRINCIPADOS
(QUOMODO OMNIUM PRINCIPATUUM VIRES PERPENDI DEBEANT)


Ao examinar as qualidades destes Estados, convém fazer uma outra consideração, isto é, se um príncipe tem Estado tão grande e forte que possa, precisando, manter-se por si mesmo, ou então se tem sempre necessidade da defesa de outrem. Para esclarecer melhor esta parte, digo julgar como podendo manter-se por si mesmos aqueles que podem, por abundância de homens e de dinheiro, organizar um exército à altura do perigo a enfrentar e fazer face a uma batalha contra quem venha assaltá-lo, assim como julgo necessitados da defesa de outrem os que não podem defrontar o inimigo em campo aberto, mas são obrigados a refugiar-se atrás dos muros da cidade, guarnecendo-os. Quanto ao primeiro caso já foi falado e, futuramente, diremos o que for necessário; relativamente ao segundo, não se pode aduzir algo mais do que exortar tais príncipes a fortificarem e a proverem sua cidade, não se preocupando com o território que a contorna. E quem tiver bem fortificada sua cidade e, acerca dos outros assuntos, se tenha conduzido para com os súditos como acima foi dito e abaixo se esclarecerá, será sempre assaltado com grande temor, porque os homens são sempre inimigos dos empreendimentos onde vejam dificuldades, e não se pode encontrar facilidade para atacar quem tenha sua cidade forte e não seja odiado pelo povo.

As cidades da Alemanha gozam de grande liberdade, têm pouco território e obedecem ao imperador quando assim querem, não temendo nem a este nem a outro poderoso que lhes esteja ao derredor porque são de tal forma fortificadas que todos pensam dever ser enfadonha e difícil sua expugnação. Na verdade, todas têm fossos e muros adequados, possuem artilharia suficiente, conservam sempre nos armazéns públicos o necessário para beber, comer e arder por um ano; além disso, para manter a plebe alimentada sem prejuízo do povo, têm sempre, em comum, por um ano, meios para lhe dar trabalho naquelas atividades que sejam o nervo e a vida daquelas cidades e das indústrias das quais a plebe se alimente. Têm em grande conceito os exercícios militares, a respeito dos quais têm muitas leis de regulamentação.

Um príncipe, pois, que tenha uma cidade forte e não se faça odiar, não pode ser atacado e, existindo alguém que o assaltasse, retirar-se-ia com vergonha, eis que as coisas do mundo são assim tão variadas que é quase impossível alguém pudesse ficar com os exércitos ociosos por um ano, a assediá-lo. A quem replicasse que, tendo as suas propriedades fora da cidade e vendo-as a arder, o povo não terá paciência e o longo assédio e a piedade de si mesmo o farão esquecer o príncipe, eu responderia que um príncipe poderoso e afoito superará sempre aquelas dificuldades, ora dando aos súditos esperança de que o mal não será longo, ora incutindo temor da crueldade do inimigo, ora assegurando-se com destreza daqueles que lhe pareçam muito temerários. Além disso, é razoável que o inimigo deva queimar o país apenas chegado, nos tempos em que o ânimo dos homens está ainda ardente e voluntarioso na defesa; por isso, o príncipe deve ter pouca dúvida porque, depois de alguns dias, quando os ânimos estão mais frios, os danos já foram causados, os males já foram sofridos e não há mais remédio; então, os súditos vêm se unir ainda mais ao semi príncipe, parecendo-lhes que este lhes deva obrigação, uma vez que suas casas foram incendiadas e suas propriedades arruinadas para a defesa do mesmo. E a natureza dos homens é aquela de obrigar-se tanto pelos benefícios que são feitos como por aqueles que se recebem. Donde, em se considerando tudo bem, não será difícil a um príncipe prudente conservar firmes, antes e depois do cerco, os ânimos de seus cidadãos, desde que não faltem víveres nem meios de defesa.

CAPÍTULO XIV
O QUE COMPETE A UM PRÍNCIPE ACERCA DA MILÍCIA (TROPA)
(QUOD PRINCIPEM DECEAT CIRCA MILITIAM)


Deve, pois, um príncipe não ter outro objetivo nem outro pensamento, nem tomar qualquer outra coisa por fazer, senão a guerra e a sua organização e disciplina, pois que é essa a única arte que compete a quem comanda. E é ela de tanta virtude, que não só mantém aqueles que nasceram príncipes, como também muitas vezes faz os homens de condição privada subirem àquele posto; ao contrário, vê-se que, quando os príncipes pensam mais nas delicadezas do que nas armas, perdem o seu Estado. A primeira causa que te faz perder o governo é negligenciar dessa arte, enquanto que a razão que te permite conquistá-lo é o ser professo da mesma.

Francisco Sforza, por estar armado, de cidadão privado que era, tornou-se duque de Milão; os filhos, para fugir às fadigas das armas, de duques passaram a simples cidadãos privados. Em verdade, entre outros males que te acarreta o estares desarmado, ele te torna vil, o que constitui uma daquelas infâmias de que o príncipe se deve guardar, como abaixo será exposto. Realmente, entre um príncipe armado e um desarmado, não existe proporção alguma, e não é razoável que quem esteja armado obedeça com gosto ao que seja desprovido de armas, nem que o desarmado se sinta seguro entre servidores armados, eis que, existindo desdém de parte de um e suspeita do lado do outro, não é possível ajam bem, estando juntos. Ainda, um príncipe que não entende de tropas, além dos outros prejuízos referidos, sofre aquele de não poder ser estimado pelos seus soldados e nem poder neles confiar.

Deve o príncipe, portanto, não desviar um momento sequer o seu pensamento do exercício da guerra, o que pode fazer por dois modos: um com a ação, o outro com a mente, Quanto à ação, além de manter bem organizadas e exercitadas as suas tropas, deve estar sempre em caçadas para acostumar o corpo às fadigas e, em parte, para conhecer a natureza dos lugares e saber como surgem os montes, como embocam os vales, como se estendem as planícies, e aprender a natureza dos rios e dos pântanos, pondo muita atenção em tudo isso. Esses conhecimentos são úteis por duas razões: primeiro, aprende-se a conhecer o próprio país e pode-se melhor identificar as defesas que ele oferece; depois, em decorrência do conhecimento e prática daqueles sítios, com facilidade poderá entender qualquer outra região que venha a ter de observar, eis que as colinas, os vales, as planícies, os rios e os pântanos que existem, por exemplo, na Toscana, têm certa semelhança com os das outras províncias, de forma que, do conhecimento do terreno de uma província, se pode passar facilmente ao de outras. O príncipe que seja falto dessa perícia, está desprovido do elemento principal de que necessita um capitão, pois ela ensina a encontrar o inimigo, estabelecer os acampamentos, conduzir os exércitos, ordenar as jornadas, fazer incursões pelas terras com vantagem sobre o inimigo.

Filopémenes, príncipe dos Aqueus, dentre os louvores que lhe foram endereçados pelos escritores, mereceu também aquele de que, nos tempos de paz, em outra coisa não pensava senão em torno de guerra e, quando excursionando pelos campos com os amigos, freqüentemente parava e com eles argumentava: - Se os inimigos estivessem sobre aquela colina e nós nos encontrássemos aqui com nosso exército, qual de nós teria vantagem? Como se poderia atacá-los, mantendo a formação da tropa? Se quiséssemos nos retirar, como deveríamos proceder? Se eles se retirassem, como faríamos para persegui-los? - E propunha-lhes, andando, todos os casos que possam ocorrer em um exército; ouvia a opinião dos mesmos, dava a sua corroborando-a com argumentos, de maneira tal que, em razão dessas contínuas cogitações, jamais poderia, comandando os exércitos, encontrar pela frente algum imprevisto para o qual não tivesse solução.

Mas, quanto ao exercício da mente, deve o príncipe ler as histórias e nelas observar as ações dos grandes homens, ver como se conduziram nas guerras, examinar as causas de suas vitórias e de suas derrotas, para poder fugir às responsáveis por estas e imitar as causadoras daquelas; deve fazer, sobretudo, como, em tempos idos, fizeram alguns grandes homens que imitaram todo aquele que antes deles foi louvado e glorificado, e sempre tiveram em si os gestos e as ações do mesmo, como se diz que Alexandre Magno imitava a Aquiles, César a Alexandre, Cipião a Ciro. Quem lê a vida de Ciro escrita por Xenofonte percebe, depois, na vida de Cipião, o quanto lhe valeu para a glória aquela imitação, bem como o quanto na castidade, afabilidade, humanidade e liberalidade, Cipião se assemelhava àquilo que Xenofonte escreveu de Ciro. Um príncipe inteligente deve observar essa semelhança de proceder, nunca ficando ocioso nos tempos de paz, mas sim, com habilidade, procurar formar cabedal para poder utilizá-lo na adversidade, a fim de que, quando mudar a fortuna, se encontre preparado para resistir.

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