Ontem, mergulhei na biografia do premier Ariel Sharon. Não tenho admiração por ele, mas fascínio por personagens com calibre para modificar, para o Bem e para o Mal, os rumos da História. Acabei descobrindo que o soldado implacável jamais deixou de orientar as decisões do estrategista político, em uma combinação consagrada por Nicolau Maquiavel em "O Príncipe". Entre outras definições, o admirador dos Bórgia dizia que para permanecer no poder, o príncipe deve assumir conscientemente que considerações morais são barreiras apenas imaginárias.
Não faltaram ocasiões assim na vida de Sharon. A capacidade de negar fatos que imagens confirmavam, se fosse conveniente, é uma evidência. Durante o ataque de suas tropas a Beirute, em 1982, humilhou o enviado do governo americano, que telefonava da cidade, negando um bombardeio que seu interlocutor assistia da própria janela. No massacre dos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, no LÍbano, em 1983, o general sabia que permitir a entrada da falange cristã libanesa nos campos seria a senha do morticínio. Apesar de avisado, deu sinal verde aos milicianos de Elie Hobeika e 700 pessoas, incluindo mulheres e crianças, foram mortas.
Durante a matança, Sharon estava num posto de comando de onde se podia ouvir os tiros. Nada fez para impedir e, mesmo com a profusão de fotos e cenas de corpos empilhados, negou qualquer participação. Como no tratado de Maquiavel, jamais demonstrou remorso, pelo menos em público, que pudesse enfraquecer sua incontestável
liderança.
Outra característica do Príncipe é a capacidade de recorrer à força e à decepção. "Ao assumir o poder deve-se cometer todas as crueldades de uma só vez, para não ter de voltar a elas todos os dias...Os benefícios devem ser oferecidos gradualmente, para que possam ser melhor apreciados". Assim, comandando a Unidade 101, a primeira força de elite de Israel, Sharon atacou a aldeia de Qibya, na Cisjordânia, em 1953. A ação deixou 69 palestinos mortos, metade dos quais mulheres e crianças. Chamado às falas por Davi Ben Gurion, diante da repercussão internacional, não recebeu repreensão, mas cumprimento. Ariel Sharon ouviu e assentiu Ben Gurion dizer que a matança foi um recado claro aos árabes, "para que entendessem o alto preço a pagar a cada judeu morto". Ou seja, um ato cruel para impor respeito pelo medo. A vida tornou-se, num gesto de bondade, um benefício diário.
Mais recentemente, a política de destruir as casas das famílias de envolvidos em atentados terroristas também se insere nesse contexto. Idem a operação que arrasou casas em Jenin, em 2001, onde 40 palestinos morreram - resposta à morte de 13 soldados de Israel. Embora os israelenses considerem tais atos como terror, nesse caso tratava-se de um combate entre ocupantes e a resistência. A retaliação castigou a população civil, o que se enquadra tanto nos princípios de submissão dos vencidos pela força (Maquiavel) quanto nas definições clássicas de terrorismo.
Militarmente, ao Príncipe cabe a vitória em função da ousadia, do despreendimento e da insensibilidade diante de perdas nas próprias fileiras, se o objetivo final for alcançado. Em 1956, Sharon envolveu-se em uma batalha com os egípcios pelo passo de Mitla, no Sinai. O comando ordenara que a passagem não fosse tomada, mas ele enviou um pelotão que acabou sob fogo cerrado. No resgate, 40 israelenses morreram. Mais tarde, os sobreviventes o acusaram de ter, deliberadamente, forçado uma batalha desnecessária, já que os inimigos estavam em retirada.O desmentido não foi suficiente para empanar-lhe a glória.
Não deixa de ser um paralelo curioso, também, a situação que deflagrou a II Intifada palestina, em 2000. Na ocasião, Sharon - em campanha eleitoral - visitou a Esplanada das Mesquitas, em Jerusalém, enfurecendo o mundo árabe. Na praça em frente ao Domo, anunciou que Israel "teria o controle perpétuo sobre a Cidade Santa". Seria ingenuidade minha atribuir a sangrenta rebelião apenas a isso, já que havia interessados nela também entre os palestinos. Mas o general acendeu o estopim e soube como se beneficiar politica e militarmente das conseqüèncias, assumindo o papel de pacificador pela guerra que em público rejeitava e, em particular, incentivava como projeto de poder. Mais maquiavélico impossível.
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